Nunca, como por estes dias, me pareceu tão
acertada a ambiguidade devidamente velada daquele provérbio chinês sobre os "tempos
interessantes", algures entre a bênção e a maldição. Tudo o que se tem
passado em Hong Kong remete para esses "tempos interessantes",
agitados, turbulentos e inquietos. Desassossegados.
Mas o que uns vêem como ameaça, insegurança,
instabilidade e perigo, outros, menos interessados na placidez da harmonia que
não mexe nem por nada, entendem ser um rumor, uma impaciência, um anseio que
vem com o sonho e a esperança. Uma espécie de mal necessário.
Por esta altura, sobre o que estará em causa
no conflito já só se poderá lamentar a impossibilidade de que o espaço que
separa uns e outros não possa ser reduzido por um diálogo genuíno e construtivo,
em que, de parte a parte, se revele abertura e disposição para negociar. E,
claro, ceder.
Todavia, não há surpresa. Sabe-se há muito que,
da China, se vê o futuro. Há um caminho traçado e não se admitem desvios. Mas o
que poderia ser clarividência é apenas poder (que é sempre fátuo). É isso que se
receia.
O Partido Comunista continua comprometido com
a sua "meritocracia" de tecnocratas, um sistema que se diz estar
enraizado profundamente (como explica Zhang Weiwei no famigerado artigo "Meritocracy
Versus Democracy", publicado no New York Times) na tradição do Confucionismo
e que se reflecte desde o antigo sistema Keju, apresentado como o primeiro
exame de selecção de funcionários públicos (que em tempos se chamavam mandarins).
Além deste "saber só de experiências feito", argumenta-se, ainda, que
neste modelo há limitação de mandatos e formas de prevenir a concentração de
poder nas mãos de uma só pessoa, numa liderança colectiva em que os escolhidos têm
que passar com distinção por práticas governativas.
Em todo o mundo, não faltam defensores deste
sistema e enquanto a robustez económica da China continuar mais aparecerão.
A natureza e justificação económicas desta
"meritocracia" não são secretas, nem na China, nem em Hong Kong (ou
Macau), como o próprio chefe do Executivo C. Y. Leung mostrou, sem qualquer
pudor, afirmando que um sistema democrático, ou seja, representativo da vontade
popular, iria fazer com que a política do território fosse dominada pelos mais
pobres, que certamente não partilham os mesmos interesses dos magnatas, uma
minoria que deve ser protegida. A todo o custo.
É o devir histórico da "livre
concorrência, com uma organização social e política correspondente, com a
supremacia económica e política da classe burguesa". Marx e Engels sabiam
o que diziam.
Mas além de podermos questionar o
funcionamento de um mercado que, supostamente, favorece a livre concorrência
mas gera um dos maiores índices de desigualdade, há algo que não devemos
esquecer e que é anterior a todas as classes, tornando fúteis quaisquer
distinções entre proletários e burgueses, pobres e ricos: não há meritocracia
que nos salve da natureza humana que corrompe e se deixa corromper.
Pode haver, sim, contudo, um primado da lei e
instituições judiciais independentes, direitos e garantias que assegurem, para
todos, valores básicos e essenciais como a educação. E liberdades: de pensar,
falar e de apontar o dedo ao que está mal e aos que não têm mérito. Mas estes
são deveres apenas de um sistema político representativo, não de uma
"elite" que estará permanentemente ocupada a defender os privilégios
e a fazer crer que não somos todos iguais.
Se a economia é realmente o indicador que
merece ser mais valorizado, então têm toda a razão. Fim da história.
Publicado no jornal Hoje Macau em Outubro de 2014
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