Em Hong Kong, os protestos entraram na
terceira semana e não há fim à vista. Numa teimosa medição de forças,
manifestantes e governo têm mantido o impasse, sem sinal de cedências, de
diálogo ou confiança mútua, as condições que poderiam resultar numa solução do interesse
de todos.
Tudo ao contrário do que Michael C. Davis,
professor da Universidade de Hong Kong, especialista em lei constitucional, deseja
e aconselha num artigo publicado no South China Morning Post, na última
sexta-feira, o dia para o qual estavam marcadas as conversações entre os
estudantes e a secretária-chefe, Carrie Lam, e que acabariam por ser canceladas
unilateralmente pelo governo.
Michael C. Davis acredita no valor de um
"diálogo sincero e construtivo". Nesse sentido, recomenda que os
estudantes insistam que a negociação assente na Lei Básica, imposição continuamente
defendida pelo governo.
"Sufrágio universal é mais do que 'uma
pessoa, um voto", diz, lembrando que, "tal como tornou claro o Comité
de Direitos Humanos das Nações Unidas, para que um processo eleitoral com um
sufrágio universal possa ser qualificado de democrático, aos eleitores tem que
ser dada liberdade de escolha numa eleição competitiva".
Ao excluir-se da nomeação do comité eleitoral
o campo pró-democrata, que "tem conseguido, de forma consistente, entre 55
a 60 por cento do voto popular" nas eleições para o Conselho Legislativo,
a proposta de lei apresentada por Pequim "falha o compromisso da Lei Básica
sobre o sufrágio universal", que fala, como gostam de dizer os que andam
sempre com o credo na boca, numa "nomeação [de candidatos] por parte de
uma comissão largamente representativa".
Michael C. Davis lembra também a promessa de
alto grau de autonomia dada ao governo de Hong Kong, um modelo que "depende"
da defesa dessa autonomia feita pelo próprio Executivo, o que "inclui proteger
valores essenciais como a democracia, direitos humanos e o primado da
lei", sem os quais não há baixo ou alto grau de nada. No entanto, a única
coisa que vemos o governo de CY Leung defender é a posição de Pequim. Que
autonomia?
Em Hong Kong, deveria estar a debater-se como
permitir que uma reforma política vá ao encontro dos padrões defendidos pelas
Nações Unidas e pela população que não abdica das exigências que faz, tal como
devia estar sob consideração a realização de uma nova consulta pública sobre a
reforma política, face às críticas generalizadas acerca da falta de pluralismo
e de manipulação de opiniões.
Em vez de trocas de acusações espúrias, o
debate deveria ser acalentado com realismo e centrar-se no que objectivamente poderá
ser conseguido: "aumentar a base constituinte da comissão de nomeação e
baixar o limiar para nomeação", as duas possibilidades mais óbvias e pragmáticas
(até no China Daily, um dos jornais oficiais do regime, já se admitiu haver
"espaço para aperfeiçoamento" nestas questões), de modo a garantir uma
eleição igualitária e justa. Que nada disto esteja ainda a ser discutido, ao
fim de mais de duas semanas de protestos, é motivo de apreensão e de profundo
desânimo.
Esperar que os protestos sejam vencidos pelo
cansaço não é estratégia, é simplesmente não saber o que fazer, até porque as
ruas bem podem voltar a ser poluídas e ocupadas pelo trânsito, que o desejo de
uma verdadeira reforma dificilmente será apagado. Mais do que um problema de CY
Leung, isso será uma questão para Xi Jinping resolver. O desconforto será partilhado
por todos.
*
A Xinhua, a agência de notícias estatal
chinesa, decidiu ouvir Rocha Vieira a propósito dos protestos de Hong Kong.
O “último governador português de Macau”,
claro, está contra o movimento “Occupy Central”, porque "se continuar a
haver agitação e violência, Hong Kong verá prejudicada a sua estabilidade e
desenvolvimento, a vida normal das pessoas e a imagem internacional do
território".
Rocha Vieira também falou sobre liberdade. O
general, que governou Macau entre 1991 e 1999 sem dar entrevistas aos media
locais e num período em que aumentaram os processos relacionados com acusações
de abuso de liberdade de imprensa (só entre 1991 e 1995, 24 casos chegaram aos
tribunais), considera que "expressar diferentes opiniões é sinónimo de
liberdade", algo que diz só existir "quando respeitamos os outros através
do diálogo e do entendimento mútuo". Continuando o pensamento, o antigo
governador português diz acreditar que "apenas a forma prudente de pensar da cultura chinesa", escreve
a agência, mais "o diálogo e o entendimento, podem ajudar a resolver os problemas".
Uma das conclusões do estudo mais completo (o
único?) realizado sobre Macau, "Macau: O Pequeníssimo Dragão", nos
anos antes da transferência de Administração, declara que o governo português
do território "nunca se mostrou interessado em incentivar qualquer
movimento democrático que emergisse na sociedade", agindo, assim, em
"consonância" com Pequim, que sempre procurou "neutralizar
qualquer foco de oposição à sua política". Era a "atitude de
acomodação portuguesa face a Pequim", escrevem os autores do estudo,
Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, a propósito da estratégia de
"cooperação" e "entendimento total" com a China.
Esta memória do tempo em que, entre a Administração portuguesa, se defendia que "mais do que jornalistas, Macau precisa é de patriotas", e em que se lembrava (?) aos jornalistas portugueses que "antes de serem jornalistas são portugueses", ajuda a perceber o legado do défice democrático. Ajudará, também, a perceber porque é que a Xinhua quis ouvir Rocha Vieira.
A "acomodação" é a de sempre. O
general, no remanso do seu recolhimento, ajusta-se sem o menor esforço ou desconforto
à narrativa do Governo Central. Há coisas que nunca mudam. Na China, é assim
que está bem.
Publicado no jornal Hoje Macau em Outubro de 2014
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