sábado, 8 de agosto de 2015

A dama de negro


“Here she comes,
you better watch your step”

“Femme Fatale”, Velvet Underground & Nico

No último dia 17 de Janeiro passaram dois anos desde que morreu Asakawa Maki. Em 2010, a notícia da morte da cantora japonesa pouco além foi de uma notícia discreta na comunicação social nipónica e também no resto do mundo pouca ou nenhuma comoção houve pelo passamento da mulher de quem se disse ter sido um cruzamento entre Billie Holiday e Nico, a impassível alemã estrela de Andy Warhol e dos Velvet Underground. O silêncio que pesou na hora morte, no entanto, evidencia um profundo contraste com a tinta que correu e os suspiros que se ouviram sobre esta mulher quando começou a carreira, tornando-se, quase de imediato, na coroada “queen of the japanese underground”.

Ao jeito das ‘femmes fatales’ da história da cultura popular, no Japão, Asakawa Maki tomou com ímpeto a cena ‘avant garde’ que começava a despontar no final da década de 1960, numa altura em que o país vivia um período de renascimento da indústria musical e as editoras discográficas ocupavam-se, empenhadas, em reproduzir no país o sucesso estrondoso de grupos estrangeiros como os Beach Boys ou The Beatles, fabricando projectos musicais que, esperançosamente, fossem os correspondentes japoneses de norte-americanos e ingleses. A intensiva produção industrial apontada ao centro do mercado de massas abriu espaços nas margens e da necessidade de alternativas surgiu uma nova leva de músicos de cariz experimental e arrojado. No heterogéneo “bando à parte”, sobressaía Asakawa Maki. 

A estreia, em disco, acontece em 1967, com a edição do ‘single’ “Tokyo Banka/Amen Jiro”. Por esta altura, a “dama de negro” (Asakawa Maki ficaria para sempre conhecida pela invariável indumentária de cor preta e pelos infindáveis cigarros que a envolviam numa nuvem de fumo) atrai a atenção de Shuji Terayama, figura seminal da contra-cultura da época, dramaturgo, poeta, fotógrafo e realizador de cinema.

Em 1968, Asakawa Maki começa a aparecer, com destaque, nas produções de teatro experimental da trupe de Terayama e rapidamente é alcandorada a ícone da emergente cultura da “nova esquerda”.
Em 1970, é publicado “Asakawa Maki no Sekai”, o primeiro longa-duração de Asakawa Maki. O álbum transpunha para as doze canções o ambiente que se esperava de um clube de jazz ‘noir’ fora de horas. O piano marca o compasso, as escovas arrastam o ritmo e a voz de Asakawa Maki irrompe, penetrante, de veludo, seduzindo com a sua terna melancolia. Na maneira de cantar percebiam-se mundos e tradições que iam das divas do jazz ao blues, passando pela “chanson”, a que Asakawa Maki presta homenagem no disco de estreia com uma versão de “Tombe La Neige”, de Adamo, cantada em japonês. É também no primeiro disco que, a certa altura, Asakawa Maki canta, em inglês, “sometimes I feel like a motherless child”, os versos iniciais que dão título ao espiritual negro que data do tempo da escravatura nos Estados Unidos, a raiz dos blues e de tudo o mais que veio a seguir.

Até meados dos anos 1990, Asakawa Maki continuou a gravar discos e a colaborar com diversas figuras do mundo da música japonesa, entre as quais Ryuichi Sakamoto. Mas aquilo que Asakwa Maki mais gostava de fazer, e que fez até ao último dia, era dar concertos, de preferência em salas acolhedoras e intimistas.

Nos últimos anos de vida, foram muitos os espectáculos na sala Pit Inn, em Shinjuku, um dos distritos de Tóquio onde Asakawa Maki tinha as suas raízes e onde viva sozinha. A morte, todavia, encontrou-a, aos 67 anos, num hotel da cidade de Nagoya. Era domingo. Naquela noite, a “dama de negro” iria dar o seu terceiro concerto do fim-de-semana, mas o coração não aguentou mais e calou-se. Para sempre.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 20 de Janeiro de 2012 

Sem comentários:

Enviar um comentário