sábado, 8 de agosto de 2015

Do fundo do baú


Em 2006, Arnaud Bernard (Onra) fez uma viagem ao Vietname, país onde o produtor de hip-hop francês tem laços ancestrais – foi na antiga colónia francesa que nasceram os seus avós –, mas que nunca havia pisado. No regresso a casa, a bagagem de Onra ia mais pesada com as cerca de três dezenas de discos de vinil antigos, chineses e vietnamitas, desencantados em mercados de rua. Passado um ano desde a viagem ao sudeste asiático, Onra publicou o álbum “Chinoiseries”.

Em francês, “chinoiserie” evoca o período a partir de finais do século XVII, com o auge no século seguinte, em que a arte europeia era pontilhada não só pelo rococó, mas também pelas imitações dos estilos e imaginários chineses. No fundo, uma tosca mistura de Ocidente e Oriente.

É essa fusão, entretanto melhor ensaiada, que Onra usa como ponto de partida nos 32 temas que compõem “Chinoiseries”. Aos “samples” dos discos antigos em que vozes exóticas e instrumentos tradicionais orientais se sobrepõem, às vezes com esforço, às estrias dos vinis gastos pelo tempo, Onra administra com precisão cirúrgica batidas e “breaks”, cortes e costuras que transportam as glórias da música chinesa e vietnamita do passado para os tempos pós-modernos do hip-hop instrumental e abstracto.

As músicas de “Chinoiseries” raramente ultrapassam a marca dos dois minutos, o que provoca o efeito de sucessão em catadupa. A sequência acelerada, juntamente com o som rugoso dos pedaços originais “sacados” dos discos antigos, são características que ajudam a colocar este trabalho de Onra num patamar à parte daquele onde repousam as compilações de pacotilha que prometem “chill out” acenando com o fascínio das sonoridades orientais embutidas sem rasgo de criatividade em assépticos ritmos pré-fabricados.

“Chinoiseries” transporta o ouvinte para um outro tempo e um outro lugar. Há ambientes de romance, mistério, festa e melancolia. Cada tema parece um interlúdio do próximo. Nesta incompletude reside parte grande do fascínio do disco – mais importante do que o destino é a viagem.

Talvez por sentir que a jornada estava longe de cumprida, este ano, Onra publicou um segundo volume das memórias vietnamitas, simplesmente intitulado “Chinoiseries Pt.2”. A fórmula repete-se, até no número de temas: uma vez mais, 32.

Em entrevista ao sítio “Synconation”, Onra referiu-se a este segundo tomo alertando para que não se esperasse “nada de novo”, já que seria “exactamente o mesmo conceito e o mesmo tipo de ‘samples’.” Dito e feito.

É verdade que, muito facilmente, aquilo que no primeiro volume era virtude, no segundo arrisca-se a tornar-se vício. Se Onra vendesse discos aos milhões, era prudente desconfiar que apresentar um segundo “Chinoiseries” soava a truque barato para facturar; sendo o produtor que é, releva da ponderação acreditar em Onra quando diz, ainda ao “Synconation”, que o faz por “divertimento e pelos fãs que valorizam este aspecto do meu trabalho”. Na verdade, “Chinoiseries”, apesar dos dois volumes, não constitui o traço mais distintivo da obra de Onra enquanto produtor de hip-hop: é apenas um “aspecto” da sua obra.

Nos seis discos que o francês editou entre 2006 e 2011, aquilo que de mais significativo existe no seu trabalho tem a marca do funk “vintage” e do R&B dos primórdios, heranças que Onra recria com as linguagens contemporâneas, desde o primeiro disco, editado, em 2006, a meias com Quetzal, “A Hip-Hop Tribute to Soul Music”, até ao excelente “Long Distance”, de 2010.

“Chinoiseries” pode ser, por isso, um desvio, mas um desvio que remeteu Arnaud Bernard ao seu próprio passado não pode ser um mero “acidente de percurso”. A viagem continua.

“Chinoiseries”
 Label Rouge Prod, 2007
“Chinoiseries Pt. 2”
All City Records, 2011
Onra

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 2 de Dezembro de 2011

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