Em 2006, Arnaud Bernard (Onra) fez uma viagem
ao Vietname, país onde o produtor de hip-hop francês tem laços ancestrais – foi
na antiga colónia francesa que nasceram os seus avós –, mas que nunca havia
pisado. No regresso a casa, a bagagem de Onra ia mais pesada com as cerca de
três dezenas de discos de vinil antigos, chineses e vietnamitas, desencantados
em mercados de rua. Passado um ano desde a viagem ao sudeste asiático, Onra
publicou o álbum “Chinoiseries”.
Em francês, “chinoiserie” evoca o período a
partir de finais do século XVII, com o auge no século seguinte, em que a arte
europeia era pontilhada não só pelo rococó, mas também pelas imitações dos
estilos e imaginários chineses. No fundo, uma tosca mistura de Ocidente e
Oriente.
É essa fusão, entretanto melhor ensaiada, que
Onra usa como ponto de partida nos 32 temas que compõem “Chinoiseries”. Aos
“samples” dos discos antigos em que vozes exóticas e instrumentos tradicionais
orientais se sobrepõem, às vezes com esforço, às estrias dos vinis gastos pelo
tempo, Onra administra com precisão cirúrgica batidas e “breaks”, cortes e
costuras que transportam as glórias da música chinesa e vietnamita do passado
para os tempos pós-modernos do hip-hop instrumental e abstracto.
As músicas de “Chinoiseries” raramente
ultrapassam a marca dos dois minutos, o que provoca o efeito de sucessão em
catadupa. A sequência acelerada, juntamente com o som rugoso dos pedaços
originais “sacados” dos discos antigos, são características que ajudam a
colocar este trabalho de Onra num patamar à parte daquele onde repousam as
compilações de pacotilha que prometem “chill out” acenando com o fascínio das
sonoridades orientais embutidas sem rasgo de criatividade em assépticos ritmos
pré-fabricados.
“Chinoiseries” transporta o ouvinte para um
outro tempo e um outro lugar. Há ambientes de romance, mistério, festa e
melancolia. Cada tema parece um interlúdio do próximo. Nesta incompletude
reside parte grande do fascínio do disco – mais importante do que o destino é a
viagem.
Talvez por sentir que a jornada estava longe
de cumprida, este ano, Onra publicou um segundo volume das memórias
vietnamitas, simplesmente intitulado “Chinoiseries Pt.2”. A fórmula repete-se,
até no número de temas: uma vez mais, 32.
Em entrevista ao sítio “Synconation”, Onra
referiu-se a este segundo tomo alertando para que não se esperasse “nada de
novo”, já que seria “exactamente o mesmo conceito e o mesmo tipo de ‘samples’.”
Dito e feito.
É verdade que, muito facilmente, aquilo que no
primeiro volume era virtude, no segundo arrisca-se a tornar-se vício. Se Onra
vendesse discos aos milhões, era prudente desconfiar que apresentar um segundo
“Chinoiseries” soava a truque barato para facturar; sendo o produtor que é, releva
da ponderação acreditar em Onra quando diz, ainda ao “Synconation”, que o faz
por “divertimento e pelos fãs que valorizam este aspecto do meu trabalho”. Na
verdade, “Chinoiseries”, apesar dos dois volumes, não constitui o traço mais
distintivo da obra de Onra enquanto produtor de hip-hop: é apenas um “aspecto”
da sua obra.
Nos seis discos que o francês editou entre
2006 e 2011, aquilo que de mais significativo existe no seu trabalho tem a
marca do funk “vintage” e do R&B dos primórdios, heranças que Onra recria
com as linguagens contemporâneas, desde o primeiro disco, editado, em 2006, a
meias com Quetzal, “A Hip-Hop Tribute to Soul Music”, até ao excelente “Long
Distance”, de 2010.
“Chinoiseries” pode ser, por isso, um desvio,
mas um desvio que remeteu Arnaud Bernard ao seu próprio passado não pode ser um
mero “acidente de percurso”. A
viagem continua.
“Chinoiseries”
Label Rouge Prod, 2007
“Chinoiseries Pt. 2”
All City Records, 2011
Onra
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