Há uma semana, trouxe a estas páginas Asakawa
Maki, a “dama de negro”, “queen of the japanese underground”, coroada nesses
loucos anos 1960 japoneses, quando a prosperidade apontava o céu como limite e,
claro, havia “sous les pavés, la plage”, uma espécie de terreno mitológico onde
acostavam todos e mais alguns tipos da excentricidade que possibilitou um
período verdadeiramente refundador nas expressões artísticas do País do Sol
Nascente.
Os tempos estavam a mudar. Com início nos anos
1950, um ciclo de crescimento económico generalizou o bem-estar e catapultou o
Japão muito para lá das ruínas do pós-guerra. Ao mesmo tempo, ainda que
lentamente, o país abria-se ao exterior, o que teria epítome na exposição
universal de Osaka, em 1970.
Toda a conjuntura (para usar o devido economês)
tinha reflexos evidentes na arte, na cultura e na indústria do entretenimento,
cada vez mais dinâmica e arrojada. Um exemplo flagrante é o surgimento do
chamado “Iroke Kayôyoku”, sendo que “iroke” significa “erótico” e “kayôyoku”
refere-se a um estilo musical popular (no sentido ‘pop’) que tem um equivalente
naquilo que em Portugal foi chamado, em tempos, de “canções ligeiras” (tem
muito mais ‘patine’ do que ‘easy listening’, convenhamos).
O “boom” económico foi estrondoso como um
movimento brusco de placas tectónicas e abriu espaços à passagem de uma miríade
de estrelas alternativas de uma constelação em constante renovação. Entre
aquelas de brilho mais ofuscante, destaque merecido para Ike Reiko, celebrada
“dominatrix” do “Iroke Kayôyoku”.
Ike nasceu quando a revolução económica que trouxe novos costumes estava a ganhar terreno, em 1954. Talvez pressentindo, desde cedo, a urgência dos tempos em que veio ao mundo, a heroína desta história mentiu sobre a sua idade e identidade e, com apenas 16 anos, estreou-se como actriz num “pink film”, a suave designação da época para o que hoje conhecemos como filme pornográfico. Com a façanha, Ike Reiko inauguraria uma bem sucedida carreira cinematográfica, mas o que nos traz aqui são contas de outros contos.
Em 1971, o ano em que aparece pela primeira
vez na grande tela no filme “Onsen Mimizu Geisha”, realizado por Suzuki
Norifumi, Ike Reiko gravou um disco chamado “Kôkotsu no Sekai”, para a editora
Teichiku Records.
O álbum era suposto ser apenas mais um na já
longa lista do catálogo “Iroke Kayôyoku”: canções feitas segundo a medida do
desejo, a meio caminho entre o erótico e o exótico, luxuriantes orquestrações,
respirações e ritmos sugestivos banhados por melodias levemente sonhadoras e
vagamente terrenas (é preciso um módico de credibilidade para nos pormos a
sonhar). “Kôkotsu no Sekai” tem tudo isso, mas tem muito mais.
Hoje, para os coleccionadores destes
artefactos, a interpretação de Ike Reiko transformou o disco num verdadeiro
objecto de desejo, a consubstanciação, na forma de música, de tudo o que define
o erotismo, a sensualidade, a volúpia e, enfim, a depravação.
Diz-se que Ike Reiko estava nua no estúdio
quando gravou o disco. Talvez na busca de um qualquer paralelismo, os
produtores optaram por despir também as músicas até chegarem ao essencial, osso
e carne, um corpo livre de distracções que desviassem a atenção da prestação
endiabrada de Ike. O diabo, sabe-se, está nos detalhes, e detalhes é coisa que
não falta no desempenho vocal de Ike Reiko, uma verdadeira torrente que jorra
das alturas de um êxtase cósmico e que faz de “Je t’aime, moi non plus”, de
Serge Gainsbourg, uma brincadeira para meninos do coro.
Ora, menina do coro, já se percebeu, é coisa
que Ike Reiko não era. Em 1977, já na curva descendente da carreira, foi
acusada da posse de narcóticos, mas escapou à prisão. Sorte diferente teve
pouco tempo mais tarde quando a polícia a deteve sob a suspeita de estar
envolvida numa operação ilegal de jogo e de ligações aos “yakuza”. Foi o ponto
final na vida artística de Ike, tão abrupto como o início.
Ao que consta, a indústria dos chamados “pink
films” continua bem de saúde e recomenda-se já para lá dos limites japoneses,
noutros países da região, como a Coreia do Sul, que todos os anos alberga um
festival dedicado ao género.
No entanto, ouvir um disco como “Kôkotsu no
Sekai” é regressar a um passado que, definitivamente, não existe mais e, muito
provavelmente, nunca mais há-de repetir-se.
Para a generalidade do público, Ike Reiko será
mais uma na lista das preciosidades castiças apanhadas no arrastão de um
qualquer tarantinesco caçador de pérolas que depois são comercializadas ao
desbarato nos mercados populares. Mas não se deixem levar: como diz um
provérbio chinês, as pérolas não se encontram na costa, é preciso mergulhar
para as encontrar. Bons sonhos.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 10 de Fevereiro de 2012
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