sábado, 8 de agosto de 2015

Sonhos cor de rosa


Há uma semana, trouxe a estas páginas Asakawa Maki, a “dama de negro”, “queen of the japanese underground”, coroada nesses loucos anos 1960 japoneses, quando a prosperidade apontava o céu como limite e, claro, havia “sous les pavés, la plage”, uma espécie de terreno mitológico onde acostavam todos e mais alguns tipos da excentricidade que possibilitou um período verdadeiramente refundador nas expressões artísticas do País do Sol Nascente.

Os tempos estavam a mudar. Com início nos anos 1950, um ciclo de crescimento económico generalizou o bem-estar e catapultou o Japão muito para lá das ruínas do pós-guerra. Ao mesmo tempo, ainda que lentamente, o país abria-se ao exterior, o que teria epítome na exposição universal de Osaka, em 1970.

Toda a conjuntura (para usar o devido economês) tinha reflexos evidentes na arte, na cultura e na indústria do entretenimento, cada vez mais dinâmica e arrojada. Um exemplo flagrante é o surgimento do chamado “Iroke Kayôyoku”, sendo que “iroke” significa “erótico” e “kayôyoku” refere-se a um estilo musical popular (no sentido ‘pop’) que tem um equivalente naquilo que em Portugal foi chamado, em tempos, de “canções ligeiras” (tem muito mais ‘patine’ do que ‘easy listening’, convenhamos).

O “boom” económico foi estrondoso como um movimento brusco de placas tectónicas e abriu espaços à passagem de uma miríade de estrelas alternativas de uma constelação em constante renovação. Entre aquelas de brilho mais ofuscante, destaque merecido para Ike Reiko, celebrada “dominatrix” do “Iroke Kayôyoku”.

Ike nasceu quando a revolução económica que trouxe novos costumes estava a ganhar terreno, em 1954. Talvez pressentindo, desde cedo, a urgência dos tempos em que veio ao mundo, a heroína desta história mentiu sobre a sua idade e identidade e, com apenas 16 anos, estreou-se como actriz num “pink film”, a suave designação da época para o que hoje conhecemos como filme pornográfico. Com a façanha, Ike Reiko inauguraria uma bem sucedida carreira cinematográfica, mas o que nos traz aqui são contas de outros contos.

Em 1971, o ano em que aparece pela primeira vez na grande tela no filme “Onsen Mimizu Geisha”, realizado por Suzuki Norifumi, Ike Reiko gravou um disco chamado “Kôkotsu no Sekai”, para a editora Teichiku Records.

O álbum era suposto ser apenas mais um na já longa lista do catálogo “Iroke Kayôyoku”: canções feitas segundo a medida do desejo, a meio caminho entre o erótico e o exótico, luxuriantes orquestrações, respirações e ritmos sugestivos banhados por melodias levemente sonhadoras e vagamente terrenas (é preciso um módico de credibilidade para nos pormos a sonhar). “Kôkotsu no Sekai” tem tudo isso, mas tem muito mais.

Hoje, para os coleccionadores destes artefactos, a interpretação de Ike Reiko transformou o disco num verdadeiro objecto de desejo, a consubstanciação, na forma de música, de tudo o que define o erotismo, a sensualidade, a volúpia e, enfim, a depravação.

Diz-se que Ike Reiko estava nua no estúdio quando gravou o disco. Talvez na busca de um qualquer paralelismo, os produtores optaram por despir também as músicas até chegarem ao essencial, osso e carne, um corpo livre de distracções que desviassem a atenção da prestação endiabrada de Ike. O diabo, sabe-se, está nos detalhes, e detalhes é coisa que não falta no desempenho vocal de Ike Reiko, uma verdadeira torrente que jorra das alturas de um êxtase cósmico e que faz de “Je t’aime, moi non plus”, de Serge Gainsbourg, uma brincadeira para meninos do coro.

Ora, menina do coro, já se percebeu, é coisa que Ike Reiko não era. Em 1977, já na curva descendente da carreira, foi acusada da posse de narcóticos, mas escapou à prisão. Sorte diferente teve pouco tempo mais tarde quando a polícia a deteve sob a suspeita de estar envolvida numa operação ilegal de jogo e de ligações aos “yakuza”. Foi o ponto final na vida artística de Ike, tão abrupto como o início.

Ao que consta, a indústria dos chamados “pink films” continua bem de saúde e recomenda-se já para lá dos limites japoneses, noutros países da região, como a Coreia do Sul, que todos os anos alberga um festival dedicado ao género.

No entanto, ouvir um disco como “Kôkotsu no Sekai” é regressar a um passado que, definitivamente, não existe mais e, muito provavelmente, nunca mais há-de repetir-se.

Para a generalidade do público, Ike Reiko será mais uma na lista das preciosidades castiças apanhadas no arrastão de um qualquer tarantinesco caçador de pérolas que depois são comercializadas ao desbarato nos mercados populares. Mas não se deixem levar: como diz um provérbio chinês, as pérolas não se encontram na costa, é preciso mergulhar para as encontrar. Bons sonhos.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 10 de Fevereiro de 2012 

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