domingo, 9 de agosto de 2015

À espera das ruínas

Da primeira vez que vi Pequim, o que mais me impressionou não foi a grandeza da cidade, o número infinito de pessoas, o constante trânsito nas estradas de perder de vista ou o horizonte cercado pelo fumo das chaminés das fábricas onde desalmadamente se consome carvão. O que mais me impressionou foi que Pequim, a capital do Império do Meio, centro de uma civilização milenar, parecia uma qualquer cidade de construção recente e crescida ao sabor das necessidades de uma metrópole vizinha.

Ao percorrer as longas avenidas só me ocorria perguntar: onde estão os monumentos e os edifícios históricos, o património e os vestígios do passado? Para onde quer que olhasse, a mesma visão: filas compridas de prédios residenciais, os mais antigos parecendo ter entre 20 a 30 anos, edifícios que não se distinguiam uns dos outros e que eram, a cada passo, interrompidos por outros igualmente gigantes, sedes de empresas ou instituições ostentando desenhos de “estilo ocidental”, blocos rectangulares com uma escala industrial, fria, espelhados para reflectirem um céu que a poluição ia arranhando.

O cenário repete-se em cada um dos “anéis”, a forma como o sistema rodoviário organiza as auto-estradas de múltiplas faixas que envolvem a cidade, e que ampliam a sensação de “déjà vu”, como se estivéssemos às voltas num labirinto que nos vence pelo tamanho.

Esta foi a primeira impressão forte que guardei: o vulto de uma cidade em constante “renovação”, uma espécie de registo visual a três dimensões da história recente do país, uma sucessão de transformações que vão acontecendo mais depressa do que o resto do mundo e até a própria China parecem conseguir absorver.

Foi durante os anos 1990 que se deu início à destruição em massa dos “hutong” de Pequim, os bairros tradicionais que guardam nos seus limites as tradições e culturas que fazem povos e países. Histórias e memórias. “No auge da corrida para a modernidade”, escreveu o jornalista Jonathan Kaiman na revista norte-americana The Atlantic, “cerca de 600 ‘hutong’ eram destruídos em cada ano, forçando o realojamento de 500 mil pessoas”.

Nos anos 1980, calcula-se que havia na capital chinesa cerca de 7000 bairros tradicionais, os mais antigos de há 600 anos. À entrada do novo milénio, em 2001, os “hutong” de Pequim eram já apenas 1500. Hoje, em toda a cidade, contam-se menos de 500, um número em constante queda. Como que da noite para o dia, Pequim passou da dinastia Ming à modernidade.

Depois de terem sobrevivido “a séculos de guerras e revoluções, às tensões da propriedade colectiva e à turbulência dos primeiros anos das reformas económicas”, os “hutong” não resistiram à era do “crescimento” e do “desenvolvimento”, ao tempo do ritmo acelerado da economia, dos grandes eventos e da internacionalização.

A pretexto da “modernidade”, da necessidade de projectos virados para o turismo e até de promessas de recuperação do património, a história de Pequim foi literalmente dizimada no que frequentemente é descrito como um acto de vandalismo praticado pelas próprias autoridades e pelos promotores imobiliários.

Avenidas inteiras de bairros antigos foram arrasadas, em muitos casos, como Qianmen, para serem substituídas por cópias onde os habitantes, incluindo velhos comerciantes, alguns com negócios centenários, foram substituídos por cadeias internacionais, as únicas capazes de suportar as elevadas rendas. Famílias pouco ou nada compensadas pelas expropriações de que foram vítimas viram-se obrigadas a procurar alojamento nos prédios baratos da periferia, longe do centro onde sempre viveram e que agora está reservado para os planos de quem pode. Até alguém decidir que já não é rentável.

Talvez até ao momento que o escritor Italo Calvino dizia haver na vida dos imperadores: “o momento desesperado em que se descobre que este império que nos parecera a soma de todas as maravilhas é uma ruína sem pés nem cabeça, que a sua corrupção está demasiado gangrenada para que baste o nosso ceptro para a remediar, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros da sua longa ruína”.

Nesta história do insaciável apetite chinês pelo “progresso”, esse desejo maior do que tudo, em que nunca nada parece estar alguma vez concluído, alguma vez completo, resta esperar pelas ruínas. É tudo o que há para herdar.

Publicado no jornal Hoje Macau em Março de 2014 

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