Da primeira vez que vi Pequim, o que mais me
impressionou não foi a grandeza da cidade, o número infinito de pessoas, o
constante trânsito nas estradas de perder de vista ou o horizonte cercado pelo
fumo das chaminés das fábricas onde desalmadamente se consome carvão. O que
mais me impressionou foi que Pequim, a capital do Império do Meio, centro de
uma civilização milenar, parecia uma qualquer cidade de construção recente e
crescida ao sabor das necessidades de uma metrópole vizinha.
Ao percorrer as longas avenidas só me ocorria
perguntar: onde estão os monumentos e os edifícios históricos, o património e
os vestígios do passado? Para onde quer que olhasse, a mesma visão: filas
compridas de prédios residenciais, os mais antigos parecendo ter entre 20 a 30
anos, edifícios que não se distinguiam uns dos outros e que eram, a cada passo,
interrompidos por outros igualmente gigantes, sedes de empresas ou instituições
ostentando desenhos de “estilo ocidental”, blocos rectangulares com uma escala
industrial, fria, espelhados para reflectirem um céu que a poluição ia
arranhando.
O cenário repete-se em cada um dos “anéis”, a
forma como o sistema rodoviário organiza as auto-estradas de múltiplas faixas
que envolvem a cidade, e que ampliam a sensação de “déjà vu”, como se
estivéssemos às voltas num labirinto que nos vence pelo tamanho.
Esta foi a primeira impressão forte que
guardei: o vulto de uma cidade em constante “renovação”, uma espécie de registo
visual a três dimensões da história recente do país, uma sucessão de
transformações que vão acontecendo mais depressa do que o resto do mundo e até
a própria China parecem conseguir absorver.
Foi durante os anos 1990 que se deu início à
destruição em massa dos “hutong” de Pequim, os bairros tradicionais que guardam
nos seus limites as tradições e culturas que fazem povos e países. Histórias e
memórias. “No auge da corrida para a modernidade”, escreveu o jornalista Jonathan
Kaiman na revista norte-americana The Atlantic, “cerca de 600 ‘hutong’ eram destruídos
em cada ano, forçando o realojamento de 500 mil pessoas”.
Nos anos 1980, calcula-se que havia na capital
chinesa cerca de 7000 bairros tradicionais, os mais antigos de há 600 anos. À
entrada do novo milénio, em 2001, os “hutong” de Pequim eram já apenas 1500.
Hoje, em toda a cidade, contam-se menos de 500, um número em constante queda.
Como que da noite para o dia, Pequim passou da dinastia Ming à modernidade.
Depois de terem sobrevivido “a séculos de
guerras e revoluções, às tensões da propriedade colectiva e à turbulência dos
primeiros anos das reformas económicas”, os “hutong” não resistiram à era do
“crescimento” e do “desenvolvimento”, ao tempo do ritmo acelerado da economia,
dos grandes eventos e da internacionalização.
A pretexto da “modernidade”, da necessidade de
projectos virados para o turismo e até de promessas de recuperação do
património, a história de Pequim foi literalmente dizimada no que
frequentemente é descrito como um acto de vandalismo praticado pelas próprias
autoridades e pelos promotores imobiliários.
Avenidas inteiras de bairros antigos foram
arrasadas, em muitos casos, como Qianmen, para serem substituídas por cópias
onde os habitantes, incluindo velhos comerciantes, alguns com negócios
centenários, foram substituídos por cadeias internacionais, as únicas capazes
de suportar as elevadas rendas. Famílias pouco ou nada compensadas pelas
expropriações de que foram vítimas viram-se obrigadas a procurar alojamento nos
prédios baratos da periferia, longe do centro onde sempre viveram e que agora
está reservado para os planos de quem pode. Até alguém decidir que já não é
rentável.
Talvez até ao momento que o escritor Italo
Calvino dizia haver na vida dos imperadores: “o momento desesperado em que se
descobre que este império que nos parecera a soma de todas as maravilhas é uma
ruína sem pés nem cabeça, que a sua corrupção está demasiado gangrenada para
que baste o nosso ceptro para a remediar, que o triunfo sobre os soberanos
adversários nos fez herdeiros da sua longa ruína”.
Nesta história do insaciável apetite chinês
pelo “progresso”, esse desejo maior do que tudo, em que nunca nada parece estar
alguma vez concluído, alguma vez completo, resta esperar pelas ruínas. É tudo o
que há para herdar.
Publicado no jornal Hoje Macau em Março de 2014
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