domingo, 9 de agosto de 2015

Realidades paralelas

“Ernst Jünger diria que a grandeza consiste em estar exposto à tempestade. Estar no centro de cada acção, no centro do poder. Usar tudo como um meio e fazer de si próprio o fim. Quem disser que isto é amoral, que a vida não pode existir sem ética, que a economia tem limites e deve obedecer a certas regras, é meramente alguém que nunca esteve no comando, alguém que foi derrotado pelo mercado. A ética é o limite do vencido, a protecção do perdedor, a justificação moral para aqueles que não conseguiram arriscar tudo e tudo ganhar”.

As palavras acima transcritas não são de um texto sobre o capitalismo, sobre Wall Street ou sobre os novos milionários russos ou chineses, sobre Hong Kong ou, já agora, sobre “a capital mundial do jogo”, Macau. Não.

A citação que começa por evocar o filósofo alemão que deixou em livro a sua experiência nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial pertence a Roberto Saviano, autor de “Gomorra”, sobre a organização criminosa mais poderosa e violenta da Europa, a “Camorra”.

Os “camorristi”, como são conhecidos os membros da máfia napolitana, construíram um verdadeiro império em que se dedicam ao tráfico de droga e à agiotagem, mas também ao jogo clandestino e à contrafacção, passando ainda por inúmeras outras actividades que vão desde a produção de cimento às indústrias alimentares, carne, peixe ou leite. A autêntica economia paralela que nasceu em Nápoles mas corre o mundo foi possível apenas porque a “Camorra” tem entre os seus credos, ou dogmas, como a “omertà” (um código de honra, um voto de silêncio), o empreendedorismo. Há que negociar. Qualquer coisa. Até nada.

Tal como acreditam piamente que não devem, em circunstância alguma, colaborar com as autoridades ou delas precisarem para o que quer que seja, os “camorristi” devotam todas as energias num objectivo: o poder. E aqui, escreve Saviano, a lógica dos “capos”, os chefes mafiosos, coincide com a das mais agressivas teorias económicas do nosso tempo (neoliberalismo à cabeça), as que têm por programa destruir tudo o que possa servir de obstáculo ao mercado, ou, tal é por estes dias a esquizofrenia, aos “mercados”.

Tanto para uns como para outros, “as regras, ditadas ou impostas, são as dos negócios, lucro e vitória sobre a concorrência”. Tanto melhor, claro, se esta for eliminada. “Tudo o resto não tem importância. Tudo o resto não existe”.

Para estes “liberalistas samurais”, como lhes chama o autor de “Gomorrah”, o poder está acima de tudo e a vitória económica é mais preciosa do que a vida de qualquer pessoa. Até da própria.
Para os mafiosos, não interessa se só se tem poder durante dez anos, um ano ou uma hora. No mundo dos grandes negócios, a divisão do tempo é ainda mais infinitesimal, e um trimestre parece uma eternidade quando comparado com a fracção de segundo que afunda e salva empresas cotadas em bolsa.

“O crime organizado diversificou-se, globalizou-se e atingiu proporções macroeconómicas: produtos ilícitos podem ser produzidos num continente, traficados para outro e vendidos num terceiro”, dizem as Nações Unidas sobre as organizações criminosas que aprenderam uma lição antiga: as mais fortes, as que sobrevivem, são as que perceberam que teriam que funcionar como empresas em vez de simples grupelhos de foras-da-lei. À frieza do metal das armas era preciso aliar a frieza dos números.

E é na mesma temperatura gélida que se forjam os parâmetros com que se julga e avalia os clãs de um império qualquer, económico ou outro, legítimo ou nem por isso: “A justiça e a injustiça, na realidade, têm apenas um significado. Vitória ou derrota, algo que se faz ou algo que se sofre”.

O resto, diz Saviano, “é apenas religião e confessionários”, ou seja, uma forma de nos distrairmos da realidade paralela em que verdadeiramente vivemos. Presunção e água benta.


Publicado no jornal Hoje Macau em Fevereiro de 2014

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