“Ernst Jünger diria que a grandeza consiste em
estar exposto à tempestade. Estar no centro de cada acção, no centro do poder.
Usar tudo como um meio e fazer de si próprio o fim. Quem disser que isto é
amoral, que a vida não pode existir sem ética, que a economia tem limites e
deve obedecer a certas regras, é meramente alguém que nunca esteve no comando,
alguém que foi derrotado pelo mercado. A ética é o limite do vencido, a
protecção do perdedor, a justificação moral para aqueles que não conseguiram
arriscar tudo e tudo ganhar”.
As palavras acima transcritas não são de um
texto sobre o capitalismo, sobre Wall Street ou sobre os novos milionários
russos ou chineses, sobre Hong Kong ou, já agora, sobre “a capital mundial do
jogo”, Macau. Não.
A citação que começa por evocar o filósofo
alemão que deixou em livro a sua experiência nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial pertence a Roberto Saviano, autor de “Gomorra”, sobre a organização
criminosa mais poderosa e violenta da Europa, a “Camorra”.
Os “camorristi”, como são conhecidos os
membros da máfia napolitana, construíram um verdadeiro império em que se
dedicam ao tráfico de droga e à agiotagem, mas também ao jogo clandestino e à
contrafacção, passando ainda por inúmeras outras actividades que vão desde a
produção de cimento às indústrias alimentares, carne, peixe ou leite. A
autêntica economia paralela que nasceu em Nápoles mas corre o mundo foi
possível apenas porque a “Camorra” tem entre os seus credos, ou dogmas, como a
“omertà” (um código de honra, um voto de silêncio), o empreendedorismo. Há que
negociar. Qualquer coisa. Até nada.
Tal como acreditam piamente que não devem, em
circunstância alguma, colaborar com as autoridades ou delas precisarem para o
que quer que seja, os “camorristi” devotam todas as energias num objectivo: o
poder. E aqui, escreve Saviano, a lógica dos “capos”, os chefes mafiosos,
coincide com a das mais agressivas teorias económicas do nosso tempo
(neoliberalismo à cabeça), as que têm por programa destruir tudo o que possa
servir de obstáculo ao mercado, ou, tal é por estes dias a esquizofrenia, aos
“mercados”.
Tanto para uns como para outros, “as regras,
ditadas ou impostas, são as dos negócios, lucro e vitória sobre a
concorrência”. Tanto melhor, claro, se esta for eliminada. “Tudo o resto não
tem importância. Tudo o resto não existe”.
Para estes “liberalistas samurais”, como lhes
chama o autor de “Gomorrah”, o poder está acima de tudo e a vitória económica é
mais preciosa do que a vida de qualquer pessoa. Até da própria.
Para os mafiosos, não interessa se só se tem
poder durante dez anos, um ano ou uma hora. No mundo dos grandes negócios, a
divisão do tempo é ainda mais infinitesimal, e um trimestre parece uma
eternidade quando comparado com a fracção de segundo que afunda e salva
empresas cotadas em bolsa.
“O crime organizado diversificou-se,
globalizou-se e atingiu proporções macroeconómicas: produtos ilícitos podem ser
produzidos num continente, traficados para outro e vendidos num terceiro”,
dizem as Nações Unidas sobre as organizações criminosas que aprenderam uma
lição antiga: as mais fortes, as que sobrevivem, são as que perceberam que
teriam que funcionar como empresas em vez de simples grupelhos de foras-da-lei.
À frieza do metal das armas era preciso aliar a frieza dos números.
E é na mesma temperatura gélida que se forjam
os parâmetros com que se julga e avalia os clãs de um império qualquer,
económico ou outro, legítimo ou nem por isso: “A justiça e a injustiça, na
realidade, têm apenas um significado. Vitória ou derrota, algo que se faz ou
algo que se sofre”.
O resto, diz Saviano, “é apenas religião e
confessionários”, ou seja, uma forma de nos distrairmos da realidade paralela
em que verdadeiramente vivemos. Presunção e água benta.
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