domingo, 9 de agosto de 2015

Povo que lavas no rio das Pérolas

Parece o enredo de um mau romance, escusado e previsível. No entanto, apesar da ausência de surpresa e do desfecho a que poderíamos ser poupados, não se evita uma ligeira perturbação perante o facto nu e cru: nos últimos dois anos, quase 40 por cento das empresas de Macau e Hong Kong lavaram dinheiro. 

A conclusão é de um estudo recente da Pricewaterhouse Coopers, que, pela primeira vez, olha com profundidade para o crime económico nas duas regiões, descobrindo que, enquanto a média global do branqueamento de capitais é de 11 por cento, em Macau e Hong Kong essa percentagem sobe para 37.

Os dados apresentados pela PwC não são baseados em denúncias anónimas de activistas interessados no colapso do capitalismo, de políticos pouco patriotas ou de jornalistas abelhudos. No inquérito, explica a firma de consultoria, participaram altos quadros de 116 empresas dos dois territórios, metade das quais cotadas em bolsa, e 64 por cento com mais de mil funcionários. Bancos, em Hong Kong, e casinos, em Macau, são os que mais sofrem.

Em primeira mão, em discurso directo, temos dirigentes executivos de grandes empresas a darem conta de um problema sobre o qual são antigas as suspeitas e cuja gravidade as autoridades, pelo menos em Macau, insistem em refutar, talvez baseando-se na mera meia dúzia de condenações em tribunal, nos últimos anos, pelo crime de branqueamento de capitais.

No ano passado, depois de a comissão do Congresso norte-americano encarregue de analisar as relações entre a China e os Estados Unidos ter divulgado um relatório em que referia um “risco significativo” de lavagem de dinheiro em Macau, o Gabinete de Informação Financeira (GIF), ao mesmo tempo que revelava ter havido, em 2012, um aumento de 18 por cento no número de transacções de dinheiro suspeitas, que atingiram as 1840, garantia que não há no território um risco elevado de branqueamento de capitais, exactamente a mesma mensagem o que o Gabinete tem vindo a repetir desde que foi criado, em 2006.

Os dados do GIF mostravam, ainda, que a maioria (72 por cento) das movimentações duvidosas de dinheiro teve origem em instituições ligadas ao jogo, sector que o relatório norte-americano estimava ter um real valor seis vezes superior aos números oficiais – se for tido em conta o dinheiro que passa por “debaixo da mesa”, os 38 mil milhões de dólares americanos de receitas apurados no final do ano passado disparam para cerca de 200 mil milhões.

A isto veio o GIF dizer que em Macau existe um regime “rigoroso” de prevenção do crime de branqueamento de capitais, tal como “rigoroso” é o sistema de licenciamento para os promotores de jogo, os “junkets” responsáveis por angariar apostadores milionários a quem prestam serviços de toda a espécie, incluindo facultar o dinheiro que a China impede de atravessar fronteiras. “Eppur si muove”...

Como a água, parece ser também da natureza que o dinheiro encontre sempre o seu caminho. Da imensa China para Macau, essa porta aberta (que está na etimologia do nome chinês desta terra) por onde passaram sempre os negócios do império fechado e agora também os do hermético “capitalismo de estado”, até ao resto do mundo, o dinheiro lá vai cumprindo a sua evasão. Mas nesta história, ao contrário de quase todas as outras, o que foge consegue mesmo esconder-se. Está à vista de todos. Só não vê quem não quer.


Publicado no jornal Hoje Macau em Março de 2014 

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