domingo, 9 de agosto de 2015

A falta que faz quem cá está

O dinheiro pode comprar tudo? A resposta parece tão simples quanto evidente e até há um adágio popular para quem gosta de saber as coisas de cor e salteado. Mas o facto é que são cada vez mais esbatidas as diferenças entre preço e valor e entre o que pode e não pode ser trocado como mercadoria. São cada vez menos as coisas que o dinheiro não pode comprar, e Michael Sandel, professor de Harvard, considera que definir o papel do dinheiro e do mercado nas sociedades é uma das mais importantes questões cívicas e morais do nosso tempo.

Nos Estados Unidos, o império dos extremos, os exemplos abundam. Conta Sandel que os reclusos de Santa Barbara, na Califórnia, podem cumprir penas em celas com melhores condições a troco de 90 dólares por noite; os interessados em assistir a uma audiência do Congresso ou no Supremo Tribunal que não queiram permanecer nas filas para se inscreverem podem recorrer a empresas especializadas que vão contratar alguém, muitas vezes sem-abrigo, para suportar as longas esperas; para evitar que mulheres toxicodependentes deem à luz, há "instituições de caridade" a oferecerem 300 dólares a quem se submeter a uma esterilização; para colmatar o número insuficiente de militares, o governo contrata exércitos privados que, no Iraque e no Afeganistão, estavam em superioridade em relação aos soldados norte-americanos.

Quase sem notarmos, diz Sandel, passámos de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado, em que o que era um "instrumento" foi transformado num modo de vida em que tudo está à venda e em que os valores do mercado foram transpostos para domínios a que, em tempos, eram estranhos. E onde não devia estar, o mercado vai perverter, falsear. Os sentidos moral, cívico e social, pura e simplesmente, desaparecem. Ideias que ao longo de séculos foram centrais para a vida em sociedade, como a noção de bem comum, dissolvem-se.

Ainda que estas ideias e preocupações tenham, hoje, uma ressonância praticamente global, o maior risco existe onde a desigualdade é maior e onde o fosso que divide é, na realidade, uma vala comum onde não descansam com paz ambições e sonhos desfeitos pela injustiça.

Chegámos, claro, a Macau, onde, na forma como a sociedade está organizada, os interesses empresariais sobrepõem-se a tudo. É assim na Assembleia Legislativa, onde o peso dos empresários entre os deputados é dominante, e é assim no governo, em que, naquela que é talvez a questão mais premente para a população, a habitação, a política é não haver política e o objectivo é ignorar que há uma especulação imobiliária a impossibilitar a maioria das pessoas de ambicionarem mais do que viver numa habitação económica cujo único propósito é acomodar o maior número de pessoas no menor espaço possível.

Apesar do pleno emprego e dos inúmeros apoios e subsídios, Macau não se livrou de ter uma sociedade profundamente dividida entre os que têm muito e pouco dinheiro, mas também entre os que têm direitos e privilégios diferentes.

E o que poderia ser confundido com um "estado social", protector, é, na verdade, mais parecido com um estado que paga para resolver problemas. Ou que pensa que resolve. A comparticipação pecuniária, o plano em que o governo, desde 2008, distribui cheques pela população, é uma prova disso. E é como Sandel avisava: o mercado vai deturpar e, em última instância, falhar a intenção, já que não resolve o problema. Pelo contrário. No caso dos cheques, uma "ajuda" que deveria servir para aliviar os efeitos da crescente inflação apenas contribuiu para aumentar o custo de vida.

Acresce que, fazendo-se apenas a distinção entre "residentes permanentes" e "não-permanentes" na hora de distribuir o dinheiro, sendo o valor igual para um "permanente" milionário ou pensionista, o governo está a agravar a desigualdade, ao contrário do que o tratamento "igualitário" poderia sugerir.

Em Macau, até os impostos - um instrumento que, no fundo, serviria para legitimar a reivindicação e a exigência perante o Estado e para consubstanciar um sentido de sociedade ou comunidade -, praticamente não contam, com a óbvia excepção dos que são pagos pela indústria do jogo.

Mas mesmo quando as divisões parecem ser de "casta", ou "sectoriais", como por aqui se diz, há uma raiz económica.

O colégio eleitoral que se prepara para oficializar o segundo mandato do Chefe do Executivo, por exemplo, é composto por 400 pessoas que, na verdade, são as mais privilegiadas. Representam os seus próprios interesses e os interesses dos tais "sectores" e das associações que vivem das contribuições do governo. E vive-se nesta troca: apoio por apoio, como também acontece em Portugal, com as corporações, ou nos Estados Unidos, com os lóbis do armamento ou da indústria alimentar ou farmacêutica.


Só que um território com a reduzida dimensão de Macau não pode estar tão estratificado e dividido sem perder o que seria essencial para encorpar um sentido de sociedade, de pertença, o bem comum e a identidade. Macau precisa de uma sociedade que se interesse por Macau, isto é, pela sociedade, não apenas por cada um ou por cada interesse sectorial, e precisa de um governo que promova essa ideia de "sociedade", ou, pelo menos, que não a destrua. Sobretudo, Macau precisa que os que vivem em Macau comecem a viver em Macau. Quem cá está faz muita falta.

Publicado no jornal Hoje Macau em Julho de 2014

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