domingo, 9 de agosto de 2015

Por uma página em branco

Já foi uma folha de papel, hoje é um ecrã iluminado. Tremeluz indiferente à impaciência, branco apesar do que se escreve e apaga, vezes a perder de conta. Quanto mais escrevo, mais apago e quanto mais apago, mais escrevo. Para apagar, claro. Nada parece ter mais importância ou significado do que a página em branco. E não tem.

A página em branco mostra e esconde ao mesmo tempo. Nela vemos e nela perdemos de vista. Não tendo escolhido uma única palavra, restam disponíveis todas as que se podem escrever. Não estando nenhuma escrita são ainda possíveis todas as frases. Mas em vez de entusiasmarem, as possibilidades inquietam. A angústia de uma página em branco transforma-se na angústia de viver. Ou será o contrário? E se não for nem uma coisa nem outra? Seria um sossego. Assim seja.

Quando se vive no jornalismo, como se vive num país ou num planeta, as páginas em branco têm vida curta. O mundo não pára. As notícias também não. Incessante e crescente, uma enxurrada vem para nos levar e soterrar. E nós vamos e enterramo-nos. De bom grado. E é este o problema.

Não havendo um botão que desligue o mundo e essa estranha entidade, a "actualidade", e que depois possa servir para voltar a ligar, quando e se nos apetecer, estamos dependentes da nossa vontade - podemos saciar desejos, mas também tornamo-nos reféns de instintos e vícios, como o de querer saber "o que se passa", a tal "actualidade" que "acontece". Sem darmos por isso, passa por nós tudo, indistintamente e sem reflexo. Sem marca. A memória não guarda, mas esvazia.

"Por mais importante que sejam as notícias de ontem - os deslizamentos de terra, a descoberta do corpo meio-escondido de uma jovem mulher, a humilhação de um político todo-poderoso caído em desgraça - todas as manhãs, toda a cacofonia começa de novo. Um portal de notícias tem a amnésia institucional do serviço de urgências de um hospital: as manchas de sangue da noite são passadas a pano e as memórias dos mortos apagadas". Não há "follow up" que dure para sempre. Alain de Botton tem razão.

Em "The News: A User's Manual", o filósofo inglês defende uma abordagem epicurista das notícias, ou seja, "a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos", como bem se descreve na Wikipedia o legado de Epicuro.

Para Alain de Botton, na impossibilidade de haver um único dia sem notícias devido a um "extraordinário esforço de coordenação" por parte da humanidade, temos sempre a opção de renunciar às notícias a que estamos ligados através do computador ou do telefone, em casa, no escritório, na rua, no comboio ou no avião, e que são um adversário da introspecção, impedindo-nos de acalentar pensamentos que, no fundo, podem ajudar-nos a tornarmo-nos relevantes.

"Precisamos de um alívio da impressão fomentada pelas notícias de que vivemos numa era de uma importância sem paralelo, com as nossas guerras, as nossas dívidas, as nossas revoltas, as nossas crianças desaparecidas, as nossas festas pós-estreia, as nossas OPA e os nossos mísseis rebeldes". 

Não matem o mensageiro, matem a mensagem. E deixem a página em branco. Sem sangue.


Publicado no jornal Hoje Macau em Agosto de 2014 

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