domingo, 9 de agosto de 2015

A tragédia de não saber o que é uma tragédia

“O que faz uma unidade de investigação com 7500 euros por ano? ‘Nada’, diz a directora do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, Cristina Pimentel. Este foi um dos centros que, na última avaliação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, viu o financiamento descer. Também o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, com 15 mil euros anuais, só vai poder comprar livros e manter as revistas. ‘É toda uma área de investigação que desaparece. Havendo dois centros nestas circunstâncias, é acabar com a investigação em estudos clássicos em Portugal. Acabou. Ponto final’”.

Foi esta odisseia de fatalidades, uma espécie de epopeia ao contrário, sem assuntos ou acontecimentos grandiosos, que o jornal Público narrou este fim-de-semana, depois de conhecidos os resultados da avaliação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de que dependem os apoios para a investigação académica.

Além de terem sido decididas por uma equipa em que não havia um único especialista de Clássicas, as avaliações que sentenciaram a actividade dos Estudos Clássicos portugueses foram feitas de modo não presencial, isto é, à distância. Uma vez que no conjunto que atribuiu as classificações havia escandinavos, ingleses e irlandeses, é de supor que além de desconhecerem as condições no terreno de que dispõem os investigadores, os “peritos” também conheciam mal o próprio país.

Com as notas a descerem para “Bom”, os orçamentos sofreram reduções drásticas – de 40 mil euros para 7500, em Lisboa, e de 160 mil para 15 mil, em Coimbra, ficando “em causa a maioria dos projectos destes centros”.

Entre os trabalhos afectados estão o de Frederico Lourenço, o helenista a quem Portugal deve o facto de ter deixado de ser talvez o único país da Europa sem uma tradução da “Odisseia”, de Homero, devidamente actualizada e feita directamente do grego. Por fazer ficam as traduções que havia do grego e do latim, mas também se comprometem áreas de investigação que vão da filosofia à história da ciência. Entre os projectos impossibilitados de serem concluídos estão, ainda, a tradução e publicação de manuscritos inéditos de missionários portugueses na China e em Goa.

E isto num país que, há dias, assistiu pela televisão, em directo, à trasladação para o Panteão Nacional de Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta fortemente influenciada pela cultura clássica que estudou na universidade e que foi marca de água do seu trabalho. Isto num país que, como nunca se cansam de repetir os guardiões do regime, certamente ávidos consumidores de decassílabos, escolheu para dia nacional o dia da morte do seu “maior poeta”, e o mesmo país que, há menos de um mês, celebrou ufano “800 anos de língua portuguesa”, “uma das mais importantes línguas globais contemporâneas e com mais elevado potencial presente e futuro”, dizia José Ribeiro e Castro, político do CDS, para defender o que todos deveríamos fazer: “comemorarmos, festejarmos e projectarmos mais a nossa língua portuguesa, estimarmos mais o português, ganharmos mais forte consciência do fabuloso recurso global que é”.

É o discurso a que nenhum responsável político português resiste. Em Macau, o último foi Cavaco Silva. De passagem pelo território, em cada aparição pública o presidente não perdeu oportunidade para destacar que o português é a “língua mais falada em todo o hemisfério sul”, emocionar-se ao ouvir crianças chinesas falarem português e, quiçá, também ao escutar os empresários que lhe reconheceram que “é cada vez mais importante no mundo dos negócios falar português”.
Talvez a miopia em relação ao passado ajude a perceber melhor como surgem estas iluminadas visões de futuro que nunca se cumprem, construídas com generosas quantidades de crendices, mitos e ignorâncias várias.

Era de esperar mais. Em Portugal, onde o passado está sempre a voltar para atormentar o presente e ensombrar o futuro, devia-se saber por esta altura que a História é uma fonte de conhecimento, mas não é inesgotável, como o país se prepara para sentir de forma trágica. Sem o saber.

Publicado no jornal Hoje Macau em Julho de 2014 

Sem comentários:

Enviar um comentário