“Como é que uma cidade historicamente imaculada podia
demonstrar natureza pecadora e lucrativa dos seus vícios? Francisco Xavier,
quando pôs o pé em terra, no que mais depressa pôs os olhos e a vontade foi na
obra duma igreja. E em dois dias lha fizeram, e não passou dia que ele não
dissesse nela missa e pregasse a doutrina. ‘Já não parecia aquela praia feita
de enganos e usuras, uma praça de fogo, brigas e desmanchos, um ajuntamento de
gente rica, farta, ociosa, dissoluta, sem respeito de Deus, dos homens, da
honra (...)’ Este quadro é o que foi sempre, e seria grande milagre que o céu e
o inferno convivessem em boa paz.”
Agustina
Bessa-Luís, “A Quinta Essência”
Desde meados da década passada que, nas suas
“políticas de desenvolvimento”, o Partido Comunista Chinês tem compensado o
jargão da “abertura ao capitalismo” original de finais de década de 1970 com a
retórica da “igualdade”, “partilha” e “harmonia”. No entanto, apesar da
tonitruante máquina da propaganda, ao povo chinês continuam a soar mais
cristalinas as velhinhas ideias de Deng Xiaoping.
“Enriquecer é glorioso”, proclamou o antigo
líder, que, ainda assim, sempre foi avisando: para que todos sejam ricos é
necessário que uns tenham que “enriquecer primeiro”, expressão pela qual, de
resto, ficou conhecida a estratégia anunciada em 1978, quando a China admitiu
abertamente o capitalismo e o investimento estrangeiro, mas apenas em algumas
regiões e beneficiando determinadas pessoas.
O mundo deu voltas e Deng, se fosse vivo,
teria milhões de razões para estar orgulhoso: nas últimas décadas, o número de
chineses ricos não tem parado de crescer.
Em 2003, de acordo com o Hurun Report, não
havia na China um único bilionário (alguém com uma fortuna equivalente a, pelo
menos, mil milhões de dólares americanos); este ano, foram identificados 315.
O aparecimento da maioria destes novos
super-ricos explica-se pela autêntica corrida louca ao imobiliário decretada
pelos colossais planos de urbanização, que não passam somente por vastos
projectos de blocos de edifícios residenciais e mastodônticas infra-estruturas,
mas também pela construção de cidades inteiras desde a raiz. Aos milhares.
Esta ideia, que na China não é nova – a
criação massiva de metrópoles e outras urbes dura, pelo menos, desde princípios
dos anos 1980 –, foi recentemente considerada perigosa por George Soros, quando
o super-rico americano de origem húngara esteve em Hong Kong.
Em declarações ao South China Morning Post,
Soros, investidor que especulou com a moeda de respeitáveis estados soberanos,
tendo deixado alguns à beira do colapso, aconselhava distância em relação ao
mercado imobiliário chinês. O sector, avisava, está sobreaquecido e vulnerável,
porque muitos estão a tratar a propriedade como uma forma de poupança, com as
famílias a acumularem mais do que um apartamento, aproveitando uma altura em
que os empréstimos para a habitação são facilmente acessíveis. E Soros
vaticinava: “Pelo menos os apartamentos vazios terão que ser vendidos ou
taxados. Julgo que, neste momento, é um investimento arriscado”.
Ainda que reconhecesse que a liderança chinesa
tem conseguido evitar “grandes choques” com o desenvolvimento económico traçado
até aqui (mas não um fosso entre ricos e pobres absolutamente intransponível de
tão incrivelmente fundo, cabe acrescentar), George Soros mostrava-se, contudo,
reticente quanto à prioridade dada a acelerar a urbanização de forma agressiva.
“Talvez estejam a tornar-se demasiado confiantes na sua capacidade de delinear
o futuro. Existe o risco de que estejam a levar isso demasiado longe”.
À custa do “plano de integração regional”,
também Macau vai crescendo e transformando-se numa “nova” cidade, alargando,
paulatinamente, uma periferia de limites incertos.
Aqui, à semelhança do que acontece na China,
mais do que um perigo o risco é entendido como uma oportunidade. Mas nesta
terra, mais do que uma oportunidade, o risco é, na realidade, uma cultura e um
vício tornado numa forma de vida que sempre foi celebrada como se se estivesse
constantemente em festa. Um delírio. Uma febre. É com esse estado de espírito
que muitos se sentam a uma mesa de jogo ou folheiam o catálogo de um
empreendimento habitacional de luxo.
Do outro lado das Portas do Cerco ainda chega
alguma retórica, uma campanha esforçada de doutrinas cheias de “conceitos”,
“estratégias”, “teorias” e até “ideologia”. Aqui, nada disso. Nem uma réstia.
Joga-se. Arrisca-se.
Apenas perdura a ressonância de que enriquecer
deve ser glorioso. “Deve” porque é razoável a dúvida, já que, apesar do ouro
que reluz, não se vislumbra “glória”. Só resta “enriquecer”, a única medida com
que se avalia o “desenvolvimento” e o “crescimento”, a única linguagem com a
qual se articula irracionalmente um discurso arrogante e mesquinho que exclui
irremediavelmente os que vivem fora do círculo de privilegiados; em suma, o
único fim com que se justificam todos os meios.
Qual a grandiosidade e a honra de uma riqueza
que não se basta nunca, se numa casa onde não há fome e sobra pão todos
continuam a ralhar e ninguém tem razão?
Publicado no jornal Hoje Macau em Dezembro de 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário