domingo, 9 de agosto de 2015

A febre de Deng

“Como é que uma cidade historicamente imaculada podia demonstrar natureza pecadora e lucrativa dos seus vícios? Francisco Xavier, quando pôs o pé em terra, no que mais depressa pôs os olhos e a vontade foi na obra duma igreja. E em dois dias lha fizeram, e não passou dia que ele não dissesse nela missa e pregasse a doutrina. ‘Já não parecia aquela praia feita de enganos e usuras, uma praça de fogo, brigas e desmanchos, um ajuntamento de gente rica, farta, ociosa, dissoluta, sem respeito de Deus, dos homens, da honra (...)’ Este quadro é o que foi sempre, e seria grande milagre que o céu e o inferno convivessem em boa paz.”

Agustina Bessa-Luís, “A Quinta Essência”

Desde meados da década passada que, nas suas “políticas de desenvolvimento”, o Partido Comunista Chinês tem compensado o jargão da “abertura ao capitalismo” original de finais de década de 1970 com a retórica da “igualdade”, “partilha” e “harmonia”. No entanto, apesar da tonitruante máquina da propaganda, ao povo chinês continuam a soar mais cristalinas as velhinhas ideias de Deng Xiaoping.

“Enriquecer é glorioso”, proclamou o antigo líder, que, ainda assim, sempre foi avisando: para que todos sejam ricos é necessário que uns tenham que “enriquecer primeiro”, expressão pela qual, de resto, ficou conhecida a estratégia anunciada em 1978, quando a China admitiu abertamente o capitalismo e o investimento estrangeiro, mas apenas em algumas regiões e beneficiando determinadas pessoas.

O mundo deu voltas e Deng, se fosse vivo, teria milhões de razões para estar orgulhoso: nas últimas décadas, o número de chineses ricos não tem parado de crescer.

Em 2003, de acordo com o Hurun Report, não havia na China um único bilionário (alguém com uma fortuna equivalente a, pelo menos, mil milhões de dólares americanos); este ano, foram identificados 315.

O aparecimento da maioria destes novos super-ricos explica-se pela autêntica corrida louca ao imobiliário decretada pelos colossais planos de urbanização, que não passam somente por vastos projectos de blocos de edifícios residenciais e mastodônticas infra-estruturas, mas também pela construção de cidades inteiras desde a raiz. Aos milhares.

Esta ideia, que na China não é nova – a criação massiva de metrópoles e outras urbes dura, pelo menos, desde princípios dos anos 1980 –, foi recentemente considerada perigosa por George Soros, quando o super-rico americano de origem húngara esteve em Hong Kong.

Em declarações ao South China Morning Post, Soros, investidor que especulou com a moeda de respeitáveis estados soberanos, tendo deixado alguns à beira do colapso, aconselhava distância em relação ao mercado imobiliário chinês. O sector, avisava, está sobreaquecido e vulnerável, porque muitos estão a tratar a propriedade como uma forma de poupança, com as famílias a acumularem mais do que um apartamento, aproveitando uma altura em que os empréstimos para a habitação são facilmente acessíveis. E Soros vaticinava: “Pelo menos os apartamentos vazios terão que ser vendidos ou taxados. Julgo que, neste momento, é um investimento arriscado”.

Ainda que reconhecesse que a liderança chinesa tem conseguido evitar “grandes choques” com o desenvolvimento económico traçado até aqui (mas não um fosso entre ricos e pobres absolutamente intransponível de tão incrivelmente fundo, cabe acrescentar), George Soros mostrava-se, contudo, reticente quanto à prioridade dada a acelerar a urbanização de forma agressiva. “Talvez estejam a tornar-se demasiado confiantes na sua capacidade de delinear o futuro. Existe o risco de que estejam a levar isso demasiado longe”.

À custa do “plano de integração regional”, também Macau vai crescendo e transformando-se numa “nova” cidade, alargando, paulatinamente, uma periferia de limites incertos.

Aqui, à semelhança do que acontece na China, mais do que um perigo o risco é entendido como uma oportunidade. Mas nesta terra, mais do que uma oportunidade, o risco é, na realidade, uma cultura e um vício tornado numa forma de vida que sempre foi celebrada como se se estivesse constantemente em festa. Um delírio. Uma febre. É com esse estado de espírito que muitos se sentam a uma mesa de jogo ou folheiam o catálogo de um empreendimento habitacional de luxo.

Do outro lado das Portas do Cerco ainda chega alguma retórica, uma campanha esforçada de doutrinas cheias de “conceitos”, “estratégias”, “teorias” e até “ideologia”. Aqui, nada disso. Nem uma réstia. Joga-se. Arrisca-se.

Apenas perdura a ressonância de que enriquecer deve ser glorioso. “Deve” porque é razoável a dúvida, já que, apesar do ouro que reluz, não se vislumbra “glória”. Só resta “enriquecer”, a única medida com que se avalia o “desenvolvimento” e o “crescimento”, a única linguagem com a qual se articula irracionalmente um discurso arrogante e mesquinho que exclui irremediavelmente os que vivem fora do círculo de privilegiados; em suma, o único fim com que se justificam todos os meios.


Qual a grandiosidade e a honra de uma riqueza que não se basta nunca, se numa casa onde não há fome e sobra pão todos continuam a ralhar e ninguém tem razão?

Publicado no jornal Hoje Macau em Dezembro de 2013

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