domingo, 9 de agosto de 2015

A última vez que te vi pela primeira vez


“Ceci est l'histoire d'un homme marqué par une image d'enfance.” À primeira frase, não à primeira vista, o narrador, não a imagem, diz-nos ao que vem este filme e também ao que vamos, revelando-nos tudo e nada. Mas ainda não o sabemos. Será preciso esperar pelo final para vermos (e crermos) que o princípio é o fim e o fim é o princípio.

Em “La Jetée” (1962), Chris Marker apresenta-nos uma história de apocalipse e viagens no tempo, questões que, à data, já faziam parte da literatura, do cinema ou da televisão. De lá para cá, muitas mais vezes estes objectos apareceram representados na arte e nas indústrias culturais, mas pouca eloquência haverá como neste filme de 28 minutos feito de fotografias a preto e branco, sem diálogos, apenas com um narrador, efeitos sonoros e música.

A “imagem de infância” que marca a história do homem de “La Jetée” é a imagem de uma mulher vista numa “cena de violência cujo significado ele só perceberá mais tarde”. Aconteceu no posto de observação do aeroporto de Orly, onde, aos domingos, poucos anos antes do eclodir da III Guerra Mundial, os pais levavam as crianças a ver os aviões levantar e aterrar. “Nada distingue as memórias dos outros momentos. Só mais tarde se tornam memoráveis devido às cicatrizes que deixam”.

O homem vai duvidar se realmente terá visto aquele rosto ou se o inventou para compensar os momentos que imediatamente se seguem: o rugido súbito de um avião, um gesto da mulher, um corpo dobrado. Percebe mais tarde que presenciara a morte de um homem.

Vem a guerra. O mundo tornara-se inabitável, tendo os sobreviventes ocupado os subterrâneos das cidades, onde os prisioneiros são sujeitos a experiências de viagens no tempo, a única esperança.
“O homem desta história que se conta” é um desses prisioneiros, escolhido “entre mil” para ser “emissário no tempo” com a missão de convocar passado e futuro para salvar o presente porque tem “imagens mentais poderosas” e “se é capaz de imaginar ou sonhar um outro tempo, talvez seja capaz de entrar nele.” Assim acontece.

Por várias vezes visita a mulher que guarda na sua memória, mas não sabe se inventa tudo ou se tudo não passa de um sonho.

E é a seguir à palavra “rêve” que o ecrã escurece para surgir nele a mulher dormindo. Começa então uma sequência de fotografias da mulher deitada na cama. Ouvimos pássaros. Vemos a luz da manhã que vai iluminando e despertando a mulher do seu sono. Ela muda de posição, mexe os braços, agarra os lençóis. Depois, por breves segundos, as imagens fixas transformam-se em imagens animadas. A mulher abre os olhos. Pestaneja. O gesto mais simples acontece como que por milagre. Por magia.
Esse inexplicável que vemos explicado à nossa frente, num breve instante, pode ser, afinal, o cinema e o amor. Ou a música. E é por uma música que volto sempre a este filme. Uma música que, aqui, é o som da felicidade, a sua ressonância, o seu eco. A sua manifestação.

Mas ser uma coisa é também ser o seu contrário. Ou o seu fim. E se este filme nos fala do apocalipse, do fim do mundo (um mundo que acaba, um mundo que se perde, mas também um mundo onde não é possível viver), do mesmo modo nos interpela sobre um outro mundo possível, igualmente real. Um mundo onde vivemos e onde somos felizes. Onde podemos ser felizes. Esse mundo, esses mundos, diz-nos Chris Marker, não se constroem senão dentro de nós, verdadeiros viajantes no tempo – no passado, presente e futuro –, percorrendo os caminhos e as ligações da nossa memória e das nossas expectativas.

Há quem diga que se morre duas vezes: quando deixamos de respirar e quando alguém diz o nosso nome pela última vez. Também assim sucede em “La Jetée”, onde a morte não é só a destituição do futuro, mas também do passado. É o fim do tempo. Como se a primeira fosse, afinal, a última vez. Sempre. 

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