“– As imagens da memória, depois de fixadas com as
palavras, apagam-se – disse Polo. – Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda
de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a
perdê-la pouco a pouco.”
“As
Cidades Invisíveis”, Italo Calvino
Aconteceu-me mal cheguei a Macau. Ainda que
pela primeira vez aqui assentasse pé, à primeira vista a cidade tornava-se
invisível. Não via a cidade que estava diante de mim, mas sim a que trazia nos
retalhos do imaginário e de uma memória inventada. Via também uma cidade a ser,
uma cidade em transformação. E a cidade que era não era a cidade daquele
momento e a cidade daquele momento não era a cidade que viria a ser. E assim
sucessivamente.
Escrevi, então: “Dizem-me que há dez anos o
ritmo das transformações é o que se vê. Creio que perante tamanha pressa a
tendência natural seja abrandar, se não mesmo parar. O que vejo, confesso,
também a mim me transforma. Estarei a ficar conservador. Assim mesmo: a ficar.
Como se parasse.
Como se parasse a olhar para Macau. Esqueçam os conservadores
filósofos políticos, Oakeshott e Burke, as infindáveis discussões, a sociedade
e o indivíduo, a tradição e o progresso. Atente-se no significado mais lato:
‘aquele que conserva’, que ‘guarda bem, retém na memória’. Imagine-se o
conservador, alguém que manuseia minuciosamente um objecto antigo. Que desce às
caves escuras, que sobe aos sótãos abafados. Alguém que se lembra. Lembrar é,
afinal, a razão de ser deste conservadorismo. Quem pode dispensar a memória?”
Nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma, ensina-nos a lei da natureza. Mas pode esta ordem natural explicar,
por si, que esta cidade se tenha transformado ao longo dos séculos de “porto e
ponte para as ligações entre a China e o Ocidente” num “centro internacional de
turismo e lazer”?
Escreve Wu Zhiliang na introdução à “Breve
Monografia de Macau”, traduzida por Jin Guo Ping: “Uma nação vai-se formando ao
longo da História estreitamente ligada à identidade nacional. Macau, reintegrada
na China, deverá possuir uma História própria que reúna pelo menos o consenso
dos seus habitantes. De outra maneira será difícil tentar encontrar a
identidade cultural de Macau.” Defende Wu que “precisamos de reexaminar e
reconhecer a História de Macau”.
Julgo que o apelo, ainda que lançado aos que
se dedicam à historiografia, pode ser estendido a todos os que, aqui vivendo,
fazem, no fundo, parte desta história. E podemos questionar-nos: é a “História
própria” de Macau uma mera narração das transformações? É uma simples
cronologia da inauguração dos grandes “resorts” e demais empreendimentos
turísticos? É a lista de epitáfios dos pequenos e tradicionais comércios e
restaurantes, substituídos pelas cadeias de “fast food” e de joalharias? É a
necrologia dos bairros antigos e dos antigos ofícios? Em suma, que identidade
resta?
E o que sobra da “cidade de estilo europeu”, quando
a calçada portuguesa e os edifícios de “estilo manuelino” atravessam a
fronteira, alastrando desde a Ilha da Montanha aos arrabaldes do grande delta
do Rio das Pérolas centros históricos ao “estilo ocidental”, “latino” ou outra
inanidade que lhe queiram chamar, enquanto aqui são erigidas medonhas venezas
de cartão?
O pior é que já se terá perdido de vista onde
tudo isto começou. A cada passo soa um grito de alerta, mas nada com a força ou
a veemência de penetrar os duros ouvidos dos mercadores que põem e dispõem até
a cidade não ser mais do que o que deixou de valer. Até não restar pedra sobre
pedra.
Sem comentários:
Enviar um comentário