sábado, 8 de agosto de 2015

Pedra sobre pedra

“– As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se – disse Polo. – Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.”

“As Cidades Invisíveis”, Italo Calvino

Aconteceu-me mal cheguei a Macau. Ainda que pela primeira vez aqui assentasse pé, à primeira vista a cidade tornava-se invisível. Não via a cidade que estava diante de mim, mas sim a que trazia nos retalhos do imaginário e de uma memória inventada. Via também uma cidade a ser, uma cidade em transformação. E a cidade que era não era a cidade daquele momento e a cidade daquele momento não era a cidade que viria a ser. E assim sucessivamente.

Escrevi, então: “Dizem-me que há dez anos o ritmo das transformações é o que se vê. Creio que perante tamanha pressa a tendência natural seja abrandar, se não mesmo parar. O que vejo, confesso, também a mim me transforma. Estarei a ficar conservador. Assim mesmo: a ficar. Como se parasse. 

Como se parasse a olhar para Macau. Esqueçam os conservadores filósofos políticos, Oakeshott e Burke, as infindáveis discussões, a sociedade e o indivíduo, a tradição e o progresso. Atente-se no significado mais lato: ‘aquele que conserva’, que ‘guarda bem, retém na memória’. Imagine-se o conservador, alguém que manuseia minuciosamente um objecto antigo. Que desce às caves escuras, que sobe aos sótãos abafados. Alguém que se lembra. Lembrar é, afinal, a razão de ser deste conservadorismo. Quem pode dispensar a memória?”

Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, ensina-nos a lei da natureza. Mas pode esta ordem natural explicar, por si, que esta cidade se tenha transformado ao longo dos séculos de “porto e ponte para as ligações entre a China e o Ocidente” num “centro internacional de turismo e lazer”?

Escreve Wu Zhiliang na introdução à “Breve Monografia de Macau”, traduzida por Jin Guo Ping: “Uma nação vai-se formando ao longo da História estreitamente ligada à identidade nacional. Macau, reintegrada na China, deverá possuir uma História própria que reúna pelo menos o consenso dos seus habitantes. De outra maneira será difícil tentar encontrar a identidade cultural de Macau.” Defende Wu que “precisamos de reexaminar e reconhecer a História de Macau”.

Julgo que o apelo, ainda que lançado aos que se dedicam à historiografia, pode ser estendido a todos os que, aqui vivendo, fazem, no fundo, parte desta história. E podemos questionar-nos: é a “História própria” de Macau uma mera narração das transformações? É uma simples cronologia da inauguração dos grandes “resorts” e demais empreendimentos turísticos? É a lista de epitáfios dos pequenos e tradicionais comércios e restaurantes, substituídos pelas cadeias de “fast food” e de joalharias? É a necrologia dos bairros antigos e dos antigos ofícios? Em suma, que identidade resta?

E o que sobra da “cidade de estilo europeu”, quando a calçada portuguesa e os edifícios de “estilo manuelino” atravessam a fronteira, alastrando desde a Ilha da Montanha aos arrabaldes do grande delta do Rio das Pérolas centros históricos ao “estilo ocidental”, “latino” ou outra inanidade que lhe queiram chamar, enquanto aqui são erigidas medonhas venezas de cartão?

O pior é que já se terá perdido de vista onde tudo isto começou. A cada passo soa um grito de alerta, mas nada com a força ou a veemência de penetrar os duros ouvidos dos mercadores que põem e dispõem até a cidade não ser mais do que o que deixou de valer. Até não restar pedra sobre pedra.


Publicado no jornal Hoje Macau em Novembro de 2013 

Sem comentários:

Enviar um comentário