sábado, 8 de agosto de 2015

A liberdade de dizer não



“No final dos anos 70, Nova Iorque era o sítio ideal para dizer ‘não’. A cidade transformara-se num extenso terreno baldio, especialmente os bairros da baixa, abandonados, onde se vivia de praticamente nada.” É esta a descrição, sucinta, do ambiente que gerou o movimento No Wave. Vem no livro de Marc Masters, “No Wave” (2007), sobre o período fugaz que juntou músicos e demais artistas, do blues ao punk, passando pelo avant-garde e a experimentação, todos em uníssono na rejeição à New Wave reinante.

O niilismo militante dos Suicide, Glenn Branca, The Lounge Lizards, Lydia Lunch ou dos Sonic Youth ainda hoje intriga os investigadores da história da música.

Na essência, o No Wave era um anti-movimento e uma contradição virada para múltiplas direcções, tantas quantas as que lhe deram origem. Disperso por natureza, cedo se dissipou nos fumos das chaminés industriais e nas poeiras levantadas pelo “noise” maquinal, mas a verdade é que os efeitos do No Wave galgaram as margens do tempo e do espaço.

A música industrial e o “noise” foram as consequências mais imediatas da influência do “underground” nova-iorquino, que também deixou marcas no cinema, noutras artes e noutras partes. Pequim, por exemplo.

Quase 30 anos depois, em pleno século XXI, o centro do “socialismo de características chinesas” (no jargão oficial e oficioso) serviu de pano de fundo para uma reencenação da aventura vivida na “Big Apple”.

Em 2005, na capital chinesa, foi posto à venda um CD, duplo, com uma fotografia do fosso que guarda as muralhas da Cidade Proibida. “No Beijing”, dizia o título acompanhado por quatro nomes: White-2j, Snapline, The Gar, Carsick Cars. São as quatro bandas iniciais de uma cena que despontou em força e que levou a uma internacionalização de músicos chineses sem precedentes.

Depois do disco “No Beijing”, o “bando dos quatro” passou a ocupar o palco do D-22, o clube referência da cena “indie” e alternativa de Pequim. Não tardou a que outras bandas se juntassem (AV Okubo, Joyside) e também não passou muito tempo até que os proprietários do D-22 se apercebessem de que estava na altura de criar uma editora. Assim nasceu a Maybe Mars. Lançou os discos destas bandas e, em 2009, levou-as em digressão pelos Estados Unidos. A “Indie China” foi notícia de destaque no New York Times, na Esquire e até na Foreign Policy, onde Matthew Niederhauser publicou um excelente ensaio fotográfico que documenta “o outro lado do ‘boom’ urbano da China”.
Niederhauser chegou a Pequim, em 2007, para trabalhar num projecto sobre desenvolvimento urbano e a nova arquitectura, mas acabou por passar o tempo nos bastidores do D-22. Foi aí que, durante dois anos, retratou as figuras do novo rock chinês.

Em entrevista ao Washington Post por alturas da digressão americana dos “rockers” chineses e a propósito da sua exposição e livro, "Sound Kapital: Beijing's Music Underground”, o fotógrafo respondeu a uma pergunta do incrédulo repórter sobre a mera existência de um movimento rock “underground” numa capital comunista explicando que “os tubarões de Pequim têm mais com que se preocupar do que 80 miúdos aos saltos num clube.” Miúdos que, segundo Niederhauser, estão longe da geração de Tiananmen e não pedem revoluções, apenas a liberdade de um estilo de vida alternativo à sociedade de consumo que toma conta de Pequim e da China. No fundo, apenas liberdade de dizer “não”.

Publicado no Hoje Macau no dia 27 de Maio de 2011


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