sábado, 8 de agosto de 2015

Acaso épico




A ciência é pródiga em descobertas acidentais. Do telefone à penicilina, passando pelos raios X, não faltam exemplos de felizes acasos.

Ainda que a música se preste como poucas actividades aos caprichos da sorte – se por bafejos entendermos que funcione a inspiração –, a verdade é que raramente ouvimos um “eureka” cantarolado. Estranho seria, não houvesse um problema generalizado de memória. A mesma memória que levou, por estes dias, um admirador de Brian Wilson a colocar na página do Facebook dedicada ao ‘Beach Boy’ a seguinte afirmação: “Brian Wilson inventou a música ‘indie’ quando cantou ‘sometimes, I feel very sad’”, (verso de “I Just Wasn't Made for These Times”).

Serve este intróito sobre acasos e memória para falar de “Ten Ragas To a Disco Beat”, disco do indiano Charanjit Singh.

Um pouco de história: nos anos 60 e 70, Charanjit Singh foi um entre os muitos músicos que trabalharam nas bandas sonoras de Bollywood. Com a sua Charanjit Singh Orchestra ganhou uns trocos extra a animar casamentos, tocando os temas mais populares do momento e as músicas dos filmes da indústria cinematográfica mais prolífica do mundo.

Em 1982, Charanjit decidiu dar uso ao sintetizador e máquina de ritmos que recentemente comprara (Roland TB-303 e Roland TS-808). Em apenas dois dias gravou “Ten Ragas To a Disco Beat”, onde, num dizer simples, cruzou música tradicional indiana com a música que se ouvia nas discotecas do Ocidente. O álbum foi um falhanço comercial e cedo caiu no esquecimento.

Vinte anos depois, o coleccionador de vinil Edo Bouman encontrou “Ten Ragas To a Disco Beat” numa loja de Nova Déli. Em declarações ao jornal The Guardian, Bouman recordou a experiência: “Quando cheguei ao hotel, pus o disco a tocar e fiquei fora de mim. A música soava a ‘Acid House’, parecia tocada por uns Kraftwerk ultra-minimais.” Mas, continua o Guardian, aquilo que mais impressionou Edo Bouman foi a data do disco – 1982 –, data que precedia em 5 anos aquele que era conhecido como o disco inaugural do ‘Acid House’ – o EP “Acid Tracks”, dos Phuture, lançado em 1987 pela mítica editora Trax Records, da cidade tida como o berço da música House, Chicago.
Bouman foi à procura de Charanjit. Do primeiro encontro, em Mumbai, lembra-se que o indiano “estava surpreendido por eu conhecer o seu disco. Perguntei-lhe como tinha chegado à criação do som ‘acid’, mas ele não percebeu o que eu quis dizer. Não tinha a noção do quão moderno era o disco que tinha criado.” E há tanto tempo que era preciso avivar a memória ou simplesmente iluminar a escuridão do desconhecimento.

No ano passado, através da sua editora Bombay Connection, Edo Bouman voltou a colocar “Ten Ragas To a Disco Beat” na prensa e assim dar a conhecer ao mundo o fantástico senhor Charanjit.
Na Internet, correram rápidos os rumores asseverando que a verdadeira identidade por detrás das dez músicas que misturam as clássicas ‘ragas’ indianas com as ondulações ácidas e hipnóticas dos sintetizadores e dos ritmos era o mago da electrónica Aphex Twin e não um indiano, hoje com 70 anos, que diz ter em “Ten Ragas To a Disco Beat” o seu melhor trabalho porque o único que fez a partir das suas próprias ideias. Não bastava ouvir para crer, era preciso ver.

Na crítica que fez ao disco para o Resident Advisor, William Rauscher compara o ‘Acid House’ futurista e exótico de Charanjit ao que os Kraftwerk teriam feito se tocassem ao vivo no Taj Mahal. É uma bela imagem para ilustrar esta música que tem a aura certa dos predestinados e o misticismo que associamos às profundezas da Índia, onde os deuses, afinal, primeiro proclamaram “let there be House”.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 20 de Maio de 2011


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