A ciência é pródiga em descobertas acidentais.
Do telefone à penicilina, passando pelos raios X, não faltam exemplos de
felizes acasos.
Ainda que a música se preste como poucas
actividades aos caprichos da sorte – se por bafejos entendermos que funcione a
inspiração –, a verdade é que raramente ouvimos um “eureka” cantarolado.
Estranho seria, não houvesse um problema generalizado de memória. A mesma
memória que levou, por estes dias, um admirador de Brian Wilson a colocar na
página do Facebook dedicada ao ‘Beach Boy’ a seguinte afirmação: “Brian Wilson
inventou a música ‘indie’ quando cantou ‘sometimes, I feel very sad’”, (verso
de “I Just Wasn't Made for These Times”).
Serve este intróito sobre acasos e memória para falar de “Ten Ragas To a Disco Beat”, disco do indiano Charanjit Singh.
Um pouco de história: nos anos 60 e 70,
Charanjit Singh foi um entre os muitos músicos que trabalharam nas bandas
sonoras de Bollywood. Com a sua Charanjit Singh Orchestra ganhou uns trocos
extra a animar casamentos, tocando os temas mais populares do momento e as
músicas dos filmes da indústria cinematográfica mais prolífica do mundo.
Em 1982, Charanjit decidiu dar uso ao
sintetizador e máquina de ritmos que recentemente comprara (Roland TB-303 e
Roland TS-808). Em apenas dois dias gravou “Ten Ragas To a Disco Beat”, onde,
num dizer simples, cruzou música tradicional indiana com a música que se ouvia
nas discotecas do Ocidente. O álbum foi um falhanço comercial e cedo caiu no
esquecimento.
Vinte anos depois, o coleccionador de vinil
Edo Bouman encontrou “Ten Ragas To a Disco Beat” numa loja de Nova Déli. Em
declarações ao jornal The Guardian, Bouman recordou a experiência: “Quando
cheguei ao hotel, pus o disco a tocar e fiquei fora de mim. A música soava a
‘Acid House’, parecia tocada por uns Kraftwerk ultra-minimais.” Mas, continua o
Guardian, aquilo que mais impressionou Edo Bouman foi a data do disco – 1982 –,
data que precedia em 5 anos aquele que era conhecido como o disco inaugural do
‘Acid House’ – o EP “Acid Tracks”, dos Phuture, lançado em 1987 pela mítica
editora Trax Records, da cidade tida como o berço da música House, Chicago.
Bouman foi à procura de Charanjit. Do primeiro
encontro, em Mumbai, lembra-se que o indiano “estava surpreendido por eu conhecer
o seu disco. Perguntei-lhe como tinha chegado à criação do som ‘acid’, mas ele
não percebeu o que eu quis dizer. Não tinha a noção do quão moderno era o disco
que tinha criado.” E há tanto tempo que era preciso avivar a memória ou
simplesmente iluminar a escuridão do desconhecimento.
No ano passado, através da sua editora Bombay
Connection, Edo Bouman voltou a colocar “Ten Ragas To a Disco Beat” na prensa e
assim dar a conhecer ao mundo o fantástico senhor Charanjit.
Na Internet, correram rápidos os rumores
asseverando que a verdadeira identidade por detrás das dez músicas que misturam
as clássicas ‘ragas’ indianas com as ondulações ácidas e hipnóticas dos
sintetizadores e dos ritmos era o mago da electrónica Aphex Twin e não um
indiano, hoje com 70 anos, que diz ter em “Ten Ragas To a Disco Beat” o seu
melhor trabalho porque o único que fez a partir das suas próprias ideias. Não
bastava ouvir para crer, era preciso ver.
Na crítica que fez ao disco para o Resident
Advisor, William Rauscher compara o ‘Acid House’ futurista e exótico de
Charanjit ao que os Kraftwerk teriam feito se tocassem ao vivo no Taj Mahal. É
uma bela imagem para ilustrar esta música que tem a aura certa dos
predestinados e o misticismo que associamos às profundezas da Índia, onde os deuses,
afinal, primeiro proclamaram “let there be House”.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 20 de Maio de 2011
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