A ruína da fachada do segundo sistema não tem
sido um espectáculo bonito. É verdade que tanto em Hong Kong como em Macau
nunca houve dúvidas sobre onde está o verdadeiro poder, mas quando essa força
se materializa e desce à cidade, não há chefe do Executivo que escape a
tornar-se um mero súbdito.
Além de conceder ao governo local um papel
decorativo, a visita a Hong Kong de Li Fei, o presidente da Comissão da Lei
Básica da Assembleia Popular Nacional, para explicar que as coisas são como
são, serviu, sobretudo, para dissipar as dúvidas que ainda persistissem a
respeito da autoridade, deixando uma mensagem bastante clara de intransigência
que se traduziu numa imensa desilusão para a Hong Kong e as suas gentes que
reclamam o direito a uma cidadania plena, como um genuíno sufrágio universal.
Não basta ser, é preciso parecer, lembram as
boas maneiras conscientes das boas intenções de que o inferno está cheio, mas
nesta espécie de jogo de espelhos, de reflexos, sombras e aparências movidas
por operadores invisíveis, não deveria causar espanto que um princípio
naturalmente ambíguo como "um país, dois sistemas" pudesse deixar
tantos divididos. De "equivocados", todavia, só uns - os que ditam as
regras do jogo -, têm o poder e o direito de acusar os outros.
A última semana, negra para o campo
pró-democracia de Hong Kong, acabou ainda mais escura quando, em Pequim, no 60º
aniversário da Assembleia Popular Nacional, Xi Jinping fez a defesa do regime
de partido único, afastando a adopção de qualquer reforma política de "estilo
Ocidental", repetindo o que cada líder chinês tem feito desde 1949, e que,
no fundo, é a sua principal missão:
a preservação do poder. E isso, explicou mais
uma vez o presidente, só se consegue com uma liderança unida e centralizada que
evite lutas políticas.
A tese é conhecida: a democracia não é a única
forma de substituir os "maus" pelos "bons", não promove a
unidade social (a tal "harmonia" que tanto é prezada nos discursos
oficiais), não favorece a igualdade política, não cria escolhas verdadeiramente
livres e independentes, e, do mesmo modo que depõe ditadores, também os
instala. Acresce que não se pode contrariar este "pensamento único". Neste
ponto residirá um problema que só tenderá a agravar-se, pois apenas gera uma
maior repressão, consequentes divisões e o extremar de posições.
Não é possível calar toda a gente o tempo
todo, sobretudo numa nação com a dimensão da China, e depositar no milagre
económico as esperanças de manter a população distraída a enriquecer é um salto
de fé arriscado até para laicos comunistas. No entanto, é o capital que
continua a guiar os destinos, dele dependendo, trimestre a trimestre, a
estabilidade. "It's business as usual". Como sempre.
Muito antes do princípio "um pais, dois
sistemas", já havia aquilo que os historiadores chamaram "Macao
formula". Permitiu, por exemplo, desde tempos que remontam à fixação dos
portugueses no pequeno enclave do sul da China, que os mandarins conciliassem
as atitudes pro-mercantilistas que levam a um menor proteccionismo, ao mesmo
tempo que se debatiam com preocupações relativas às questões de defesa,
decorrentes do reforço do estabelecimento que os estrangeiros iam consolidando.
Era este o dilema: a necessidade de lucrar e a necessidade de defender. É
legítimo supor que a situação tenha sobrevivido à história e se mantenha, hoje,
como ontem. Em Macau, como em Hong Kong.
Mas apesar de as duas regiões terem futuros
traçados, não será difícil de prever que o presente será considerado para os
seus habitantes demasiado importante para deixar de ser vivido. E o futuro que
mais importa é amanhã.
É com este sentido pragmático em mente que
tanto numa como noutra cidade se deveria saudar a luta por sociedades mais
justas, abertas e promotoras da igualdade, com maior transparência na
governação e nos negócios, mais responsabilização, abertura para o debate de
ideias e um maior desenvolvimento social. Pesem embora os acontecimentos dos
últimos dias, em Hong Kong esta consciência não anda desaparecida. Já em Macau
é preciso, antes de mais, esperar que nada disto seja considerado radical ou
desordeiro, ou sequer utópico. É preciso que se tornem desejos e
possibilidades. Caso contrário, nem terra dos sonhos, só de oportunidades perdidas e promessas
quebradas. Para Macau, é uma questão de escolha.
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