"O laboratório do futuro fica no Alentejo?"
A pergunta era feita, há dias, na P2, a revista do Público, a propósito de Tamera,
o "Centro Internacional de Pesquisa para a Paz, Modelo para o Futuro,
Paraíso em Construção" que existe em terras de Odemira. Foi criado em 1995
e, actualmente, tem cerca de 150 habitantes permanentes. Apenas nove são
portugueses. Quase todos, 90 por cento, são alemães. Todos acreditam que
"é possível viver fora do sistema".
Na Alemanha, de onde saíram, eram considerados
um culto. Na planície alentejana, conseguiram até pôr de acordo o Bispo de Beja
e Noam Chomsky, ambos impressionados com o "exemplo" e
"visão".
No manifesto que subscrevem, os tamerianos
dirigem-se à "geração jovem que já não encontra nenhum futuro na actual
sociedade". "A auto-suficiência alimentar, usando a permacultura e a
correcta gestão da água, e a independência energética com a luz solar são as
soluções apresentadas para a crise planetária", sintetiza o repórter Paulo
Moura. Mas isso é apenas uma parte.
"A revolução de que o mundo precisa não
se fará apenas mudando as estruturas sociais e económicas. É preciso
ocuparmo-nos também das estruturas interiores". O grande objectivo é a paz
e, para isso, é preciso destruir a "matriz global de medo e violência".
E o mal, já se sabe, corta-se pela raiz.
"As raízes da violência, dos impulsos de
posse e de conquista, que levam à opressão e à guerra, estão na mente humana.
Se não destruirmos isso em nós próprios, não vale a pena construir sociedades perfeitas,
porque estarão condenadas ao fracasso", recita o jornalista a partir da
cartilha tameriana.
Encorajando a partilha e a transparência, não
tolerando a posse, pretende-se eliminar a esfera privada. A ideia é reforçar o
sentido de comunidade.
Tudo se faz e tudo se discute em conjunto.
"Os consensos e a unanimidade surgem naturalmente no convívio da
comunidade. Como todos querem o mesmo, têm as mesmas opiniões". Discórdia,
aqui, anda lado a lado com o ódio e a violência. Benjamin von Mendelssohn, 41
anos, o chefe do governo tameriano, defende que "é uma ilusão acharmos que
as pessoas pensam de forma autónoma".
Os tamerianos acreditam que a "mudança
social vai fazer-se por um fenómeno de ressonância mórfica, em vários aspectos
idêntico ao conceito de consciência colectiva, de Karl Jung", que
juntamente com Karl Marx, Sigmung Freud e Wilhelm Reich oferece as ideias
inspiradoras. "A mudança de sistema é uma mudança de poder. O novo poder
não consiste no domínio sobre os outros, mas na reunificação com as leis
sagradas da vida", escreve Dieter Duhm no "Manifesto de Tamera",
mostrando-se convencido que o mundo vai pronta e alegremente copiar o "novo
paradigma", num "processo planetário que já não pode ser detido
porque está de acordo com as energias da enteléquia da vida".
Mas o que é a "enteléquia da vida"?
O que é esta essência da vida? Ter resposta a esta pergunta é, de algum modo,
deter e exercer um poder. Será a partir da definição desta "essência"
que todos os tamerianos quererão "o mesmo", mas até esta
"reunificação com as leis sagradas da vida" vai depender da
interpretação de alguém, que depois a ditará de um qualquer pedestal. Também
por aqui anda um desejo antigo de poder. Para salvar o mundo, primeiro é
preciso controlá-lo.
São incontáveis os exemplos de colectividades,
"retiros" onde se quis viver "fora do sistema". Na maioria,
havia apenas o desejo de fugir do mundo. Em Tamera, isso não basta: é preciso
mudá-lo, uma pulsão tão antiga quanto o próprio mundo.
Na sua reportagem, Paulo Moura sublinha que,
antes de tudo, é preciso aprender a linguagem própria de Tamera, na qual se
dizem coisas como "ele tem boa frequência", "isso faz parte do
campo morfogenético", "aquilo tem um imenso poder de cura" ou se
"descondicionam" pessoas. É que "o paraíso são as
palavras".
No entanto, apesar da polissemia, a linguagem continua
a representar um mundo há muito construído. E encerra, além de relações de
poder e autoridade, também amor e ódio, paz e violência.
É também através da linguagem que a humanidade
se tem organizado em sistemas e em sociedades e é assim que se tem mostrado
capaz de mudanças e até de revoluções. Todavia, não conseguimos tornar o mundo
e nós próprios definitivamente melhores. Que se continue a tentar é, ao mesmo
tempo, motivo de admiração e apreensão. Uma esperança e um desespero.
Não há futuro que não seja pretérito. E só
assim ele será mais que perfeito.
Publicado no jornal Hoje Macau em Setembro de 2014
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