A bordo do avião numa recente viagem à China, por
cortesia da companhia aérea estenderam-me o China Daily. Foi já num estado
soporoso que cheguei à penúltima página do jornal oficial chinês em língua
inglesa, onde dei com o título em que se lia "A Lei Básica é a base",
escrito num inescapável negrito. Matutei o possível na redundância, indeciso
entre apreciar o estilo ou reprovar o rodeio.
Tratava-se de um artigo de Rao Geping,
"membro da Comissão da Lei Básica da Região Administrativa Especial de
Hong Kong da Assembleia Popular Nacional e professor de Direito na Universidade
de Pequim".
A propósito da discussão sobre o sufrágio
universal em Hong Kong, em onze não muito extensos parágrafos o docente escreveu
por onze vezes "amar a pátria e amar Hong Kong", de cada vez para
explicar o que quer dizer a expressão.
Defende Rao que este amor tem "base
legal", pois nesse contexto ele pode ser manifestado pelo facto de
"os candidatos terem que satisfazer o requisito legal básico de 'apoiar o
retorno de Hong Kong à China' e seguir a Lei Básica", e qualquer candidato
que aceita estes "factos legais" está a "aceitar as obrigações
de amar a pátria". Assim, "só quando um candidato ou candidata
[note-se o progressismo] prometer e cumprir 'amar a pátria e amar Hong Kong'
poderá satisfazer o requisito político básico de um candidato a Chefe do
Executivo".
Mas além da obrigação - apoiar o retorno da
Região Administrativa Especial à China, algo que faz parte da lei e que pende
sobre Hong Kong e Macau como um destino traçado -, não se descortina nesta
declaração de amor, que terá que ser jurada, qualquer referência ao simples
"querer bem", ou ao mais complexo, mas não menos vago,
"desenvolvimento".
No caso de Hong Kong, existe no território uma
sociedade que, por qualquer métrica ou indicador de desenvolvimento social e
humano, está a anos-luz do que se passa na China e onde a reivindicação de uma
reforma do sistema político deveria ser partilhada pelo próprio governo e pela
própria Administração, que assim reconheceriam a necessidade de se adaptarem às
mudanças naturais da sociedade e das circunstâncias.
Foi este o ponto que Alex Lo, colunista do
South China Morning Post, defendeu recentemente: "O sucesso do princípio
'um país, dois sistemas' e a sua promessa de 50 anos sem mudanças tornou-se
dependente de algumas instituições basilares. Mas essas mesmas instituições [a
indexação do dólar de Hong Kong ao dólar americano, as políticas de habitação,
saúde e educação, etc.], definidas noutro século, estão a provar-se
desadequadas e estamos a fazer um péssimo trabalho em reconstruí-las. Um
governo que funciona é aquele que é capaz de fazer funcionar essas
instituições, ao mesmo tempo que identifica as suas deficiências para as melhorar".
Alex Lo não defende, pelo menos de forma
explícita, que a reforma democrática é o caminho ou até que facilita a própria
reforma das instituições, mas considera que a evolução do sistema político
"só tem sentido no contexto institucional" em que funcionam os tais
pilares. Ou seja, o maior desafio não é conseguir, através da reforma política,
um fim em si, mas sim fazer com que as instituições que funcionam como pilares
se adaptem às circunstâncias que mudam rapidamente.
Concordando-se, ou não, se em Hong Kong isso
está, aparentemente, longe de acontecer, em Macau falham os adjectivos que sugiram
a distância que falta.
Aqui, vem de longe a acção da República
Popular da China no sentido de "neutralizar qualquer foco de oposição à
sua política", escreviam, no estudo "Macau, o Pequeníssimo
Dragão", os investigadores Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, notando
ao mesmo tempo que a Administração portuguesa agia em "consonância",
"nunca se mostrando interessada em incentivar qualquer movimento
democrático que emergisse na sociedade".
De forma simples, explica-se, assim, o triplo
défice que era identificado, então, em meados da década de 1990: "O défice
democrático, o défice corporativo e o défice de cidadania social", em que
"a estrutura do poder real limitava e restringia o exercício da democracia
representativa", em que havia "um enorme desequilíbrio nas
organizações sectoriais de interesses", com umas muito mais fortes do que
outras e com muito maior acesso à Administração, e, finalmente, com o défice de
cidadania a caracterizar-se pela "procura sócio-jurídica frustrada
(nomeadamente no domínio da habitação, do ambiente e dos estatutos pessoal e de
residente) e nas áreas de procura social suprimida, ou apenas emergente, dos
direitos sociais e direitos laborais". Hoje, como ontem. O que mudou?
À estagnação podemos, talvez, sobrepor o
crescente desfasamento da realidade (sobretudo em relação aos problemas que
afectam a vida da população), que é particularmente evidente nas vozes
"oficiais", Governo e deputados. Não é verdade, por exemplo, como se
ouve na Assembleia Legislativa, que os trabalhadores não residentes são
demasiado protegidos pela lei - basta conferir o que dizem os tratados
internacionais, alguns dos quais até ratificados por Macau, para perceber que o
que se passa é exactamente o contrário: são discriminados, muitas vezes de
forma desumana. E também não é verdade, como diz o Governo, que ao escolher não
interferir no mercado imobiliário se está a proteger o seu livre funcionamento.
Não, o "laissez faire" não corresponde ao que se passa, pois o
Governo intervém, mas apenas no sentido de permitir que a elite económica local
continue a negociar terrenos entre si e a lucrar à custa de ainda não haver um
plano de urbanização, enquanto boa parte da população é prejudicada ao ser
remetida para uma habitação pública com cada vez menos qualidade, quando não é
atirada para fora da cidade, forçada a viver em Zhuhai.
Tirando as campanhas de divulgação de leis que
insistem no tom de um infantilizado autoritarismo paternalista e o surto de
consultas públicas maniqueístas e ineficazes, cujos resultados vão sendo
manipulados consoante a conveniência, o que foi feito nos últimos 20 ou 15 anos
para combater os défices que persistem? O que mudou na acção centralizadora da
Administração, na atitude burocrática da liderança das instituições públicas ou
na dependência das associações - o pretexto usado pelos grupos económicos para
elegerem deputados pela via indirecta - em relação aos subsídios, cada vez mais
chorudos?
Mas alguma coisa mudou. Mudou, por exemplo, a
dureza com que as autoridades respondem ao aparecimento de grupos divergentes
das orientações que as chamadas "forças tradicionais" seguem para
continuarem a dominar isoladas a vida política, social e económica de Macau.
Nos últimos dias, com as detenções dos
promotores do referendo civil sobre o sufrágio universal, que, nunca é demais
lembrar, o Tribunal de Última Instância disse ser "efectivamente, uma
sondagem sobre opiniões dos cidadãos”, e com as detenções de dois elementos da
publicação satírica "Macau Concealers", assistimos a um ataque sem
precedentes à liberdade de expressão, um direito básico manifestado na
Declaração Conjunta de Portugal e da China sobre Macau e consagrado na Lei
Básica.
Com esta forma de actuar que incute o medo e
coíbe a mínima discordância em relação ao que as autoridades pretendem, Macau
dá um grande salto atrás, e, em vez de estarmos a debater o mérito ou não de
conceder a cada residente direitos básicos de cidadania, somos deixados às portas
de um tempo de má memória com um lembrete retirado da promoção de um filme de
terror: tenham medo, tenham muito medo. Com o silêncio que se ouviu da parte de
associações de jornalistas, juristas, académicos e de quase todos os deputados enquanto
assistíamos à erosão de uma liberdade fundamental, parece que a estratégia
funcionou.
O outro silêncio que fica é o de Chui Sai On,
que inicia, em Dezembro, um novo mandato para o qual foi nomeado, depois de, na
espécie de campanha que fez, ter estado apenas uma vez na rua com a população.
Foi durante cinco minutos, mas terão bastado e todas as outras arruadas
previstas foram canceladas. "Para não afectar a vida de bairro dos
moradores", justificou o mandatário da única candidatura.
E de forma quase simbólica, nesta reserva, neste
autoinfligido resguardo, Chui Sai On expõe como, ao enfraquecer a sociedade
civil, o Governo volta-se contra si próprio e as suas instituições, passando a
ser vítima de uma igual debilidade, tornando-se o problema. O que esperar? No
mínimo, é um mau augúrio para os próximos cinco anos.
Então e o amor? Deixemos de lado os lentes de
Pequim e atentemos no que nos ensina Camões: "É um não querer mais que bem
querer". E vencidos ficamos de amor, diria ainda o vate. Mas não
convencidos.
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