domingo, 9 de agosto de 2015

Pacto à Pequim

A bordo do avião numa recente viagem à China, por cortesia da companhia aérea estenderam-me o China Daily. Foi já num estado soporoso que cheguei à penúltima página do jornal oficial chinês em língua inglesa, onde dei com o título em que se lia "A Lei Básica é a base", escrito num inescapável negrito. Matutei o possível na redundância, indeciso entre apreciar o estilo ou reprovar o rodeio.
Tratava-se de um artigo de Rao Geping, "membro da Comissão da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Hong Kong da Assembleia Popular Nacional e professor de Direito na Universidade de Pequim".

A propósito da discussão sobre o sufrágio universal em Hong Kong, em onze não muito extensos parágrafos o docente escreveu por onze vezes "amar a pátria e amar Hong Kong", de cada vez para explicar o que quer dizer a expressão.

Defende Rao que este amor tem "base legal", pois nesse contexto ele pode ser manifestado pelo facto de "os candidatos terem que satisfazer o requisito legal básico de 'apoiar o retorno de Hong Kong à China' e seguir a Lei Básica", e qualquer candidato que aceita estes "factos legais" está a "aceitar as obrigações de amar a pátria". Assim, "só quando um candidato ou candidata [note-se o progressismo] prometer e cumprir 'amar a pátria e amar Hong Kong' poderá satisfazer o requisito político básico de um candidato a Chefe do Executivo".

Mas além da obrigação - apoiar o retorno da Região Administrativa Especial à China, algo que faz parte da lei e que pende sobre Hong Kong e Macau como um destino traçado -, não se descortina nesta declaração de amor, que terá que ser jurada, qualquer referência ao simples "querer bem", ou ao mais complexo, mas não menos vago, "desenvolvimento".

No caso de Hong Kong, existe no território uma sociedade que, por qualquer métrica ou indicador de desenvolvimento social e humano, está a anos-luz do que se passa na China e onde a reivindicação de uma reforma do sistema político deveria ser partilhada pelo próprio governo e pela própria Administração, que assim reconheceriam a necessidade de se adaptarem às mudanças naturais da sociedade e das circunstâncias.

Foi este o ponto que Alex Lo, colunista do South China Morning Post, defendeu recentemente: "O sucesso do princípio 'um país, dois sistemas' e a sua promessa de 50 anos sem mudanças tornou-se dependente de algumas instituições basilares. Mas essas mesmas instituições [a indexação do dólar de Hong Kong ao dólar americano, as políticas de habitação, saúde e educação, etc.], definidas noutro século, estão a provar-se desadequadas e estamos a fazer um péssimo trabalho em reconstruí-las. Um governo que funciona é aquele que é capaz de fazer funcionar essas instituições, ao mesmo tempo que identifica as suas deficiências para as melhorar".

Alex Lo não defende, pelo menos de forma explícita, que a reforma democrática é o caminho ou até que facilita a própria reforma das instituições, mas considera que a evolução do sistema político "só tem sentido no contexto institucional" em que funcionam os tais pilares. Ou seja, o maior desafio não é conseguir, através da reforma política, um fim em si, mas sim fazer com que as instituições que funcionam como pilares se adaptem às circunstâncias que mudam rapidamente.

Concordando-se, ou não, se em Hong Kong isso está, aparentemente, longe de acontecer, em Macau falham os adjectivos que sugiram a distância que falta.

Aqui, vem de longe a acção da República Popular da China no sentido de "neutralizar qualquer foco de oposição à sua política", escreviam, no estudo "Macau, o Pequeníssimo Dragão", os investigadores Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, notando ao mesmo tempo que a Administração portuguesa agia em "consonância", "nunca se mostrando interessada em incentivar qualquer movimento democrático que emergisse na sociedade".

De forma simples, explica-se, assim, o triplo défice que era identificado, então, em meados da década de 1990: "O défice democrático, o défice corporativo e o défice de cidadania social", em que "a estrutura do poder real limitava e restringia o exercício da democracia representativa", em que havia "um enorme desequilíbrio nas organizações sectoriais de interesses", com umas muito mais fortes do que outras e com muito maior acesso à Administração, e, finalmente, com o défice de cidadania a caracterizar-se pela "procura sócio-jurídica frustrada (nomeadamente no domínio da habitação, do ambiente e dos estatutos pessoal e de residente) e nas áreas de procura social suprimida, ou apenas emergente, dos direitos sociais e direitos laborais". Hoje, como ontem. O que mudou?

À estagnação podemos, talvez, sobrepor o crescente desfasamento da realidade (sobretudo em relação aos problemas que afectam a vida da população), que é particularmente evidente nas vozes "oficiais", Governo e deputados. Não é verdade, por exemplo, como se ouve na Assembleia Legislativa, que os trabalhadores não residentes são demasiado protegidos pela lei - basta conferir o que dizem os tratados internacionais, alguns dos quais até ratificados por Macau, para perceber que o que se passa é exactamente o contrário: são discriminados, muitas vezes de forma desumana. E também não é verdade, como diz o Governo, que ao escolher não interferir no mercado imobiliário se está a proteger o seu livre funcionamento. Não, o "laissez faire" não corresponde ao que se passa, pois o Governo intervém, mas apenas no sentido de permitir que a elite económica local continue a negociar terrenos entre si e a lucrar à custa de ainda não haver um plano de urbanização, enquanto boa parte da população é prejudicada ao ser remetida para uma habitação pública com cada vez menos qualidade, quando não é atirada para fora da cidade, forçada a viver em Zhuhai.

Tirando as campanhas de divulgação de leis que insistem no tom de um infantilizado autoritarismo paternalista e o surto de consultas públicas maniqueístas e ineficazes, cujos resultados vão sendo manipulados consoante a conveniência, o que foi feito nos últimos 20 ou 15 anos para combater os défices que persistem? O que mudou na acção centralizadora da Administração, na atitude burocrática da liderança das instituições públicas ou na dependência das associações - o pretexto usado pelos grupos económicos para elegerem deputados pela via indirecta - em relação aos subsídios, cada vez mais chorudos?

Mas alguma coisa mudou. Mudou, por exemplo, a dureza com que as autoridades respondem ao aparecimento de grupos divergentes das orientações que as chamadas "forças tradicionais" seguem para continuarem a dominar isoladas a vida política, social e económica de Macau.

Nos últimos dias, com as detenções dos promotores do referendo civil sobre o sufrágio universal, que, nunca é demais lembrar, o Tribunal de Última Instância disse ser "efectivamente, uma sondagem sobre opiniões dos cidadãos”, e com as detenções de dois elementos da publicação satírica "Macau Concealers", assistimos a um ataque sem precedentes à liberdade de expressão, um direito básico manifestado na Declaração Conjunta de Portugal e da China sobre Macau e consagrado na Lei Básica.

Com esta forma de actuar que incute o medo e coíbe a mínima discordância em relação ao que as autoridades pretendem, Macau dá um grande salto atrás, e, em vez de estarmos a debater o mérito ou não de conceder a cada residente direitos básicos de cidadania, somos deixados às portas de um tempo de má memória com um lembrete retirado da promoção de um filme de terror: tenham medo, tenham muito medo. Com o silêncio que se ouviu da parte de associações de jornalistas, juristas, académicos e de quase todos os deputados enquanto assistíamos à erosão de uma liberdade fundamental, parece que a estratégia funcionou.

O outro silêncio que fica é o de Chui Sai On, que inicia, em Dezembro, um novo mandato para o qual foi nomeado, depois de, na espécie de campanha que fez, ter estado apenas uma vez na rua com a população. Foi durante cinco minutos, mas terão bastado e todas as outras arruadas previstas foram canceladas. "Para não afectar a vida de bairro dos moradores", justificou o mandatário da única candidatura.

E de forma quase simbólica, nesta reserva, neste autoinfligido resguardo, Chui Sai On expõe como, ao enfraquecer a sociedade civil, o Governo volta-se contra si próprio e as suas instituições, passando a ser vítima de uma igual debilidade, tornando-se o problema. O que esperar? No mínimo, é um mau augúrio para os próximos cinco anos.

Então e o amor? Deixemos de lado os lentes de Pequim e atentemos no que nos ensina Camões: "É um não querer mais que bem querer". E vencidos ficamos de amor, diria ainda o vate. Mas não convencidos.


Publicado no jornal Hoje Macau em Agosto de 2014

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