"Uma imagem é uma vista que foi recriada
ou reproduzida. É uma aparência, ou um conjunto de aparências, que foi isolada
do local e do tempo em que primeiro se deu o seu aparecimento, e conservada -
por alguns momentos ou por uns séculos." É assim que, no sempre didático
"Modos de Ver", John Berger nos fala da imagem enquanto algo nascido
da mão humana, como uma pintura ou uma fotografia. Mas a ideia de
"construção" pode ser usada também a propósito da "imagem" como "noção".
Essas "imagens" (bom aluno, menino bem comportado ou menino mau, pai
extremoso, político honesto, etc.), explica Pierre Guiraud, mais do que
palavras e signos constituem mitologias que exprimem uma visão da humanidade e
do mundo onde estão latentes os significados de uma organização social ou, até,
do cosmos. E é adequado imaginar um universo de símbolos e não de pessoas - um
vasto espaço em que não existem fulanos nem sicranos, mas apenas as suas
imagens com as quais nos relacionamos e às quais reagimos.
Talvez nenhum outro pensador tenha dedicado
tanto do seu trabalho a desmistificar as nossas mitologias como Roland Barthes.
Na sua "crítica ideológica da linguagem da dita cultura de massa", o
autor francês afirma que "a mitologia participa na construção do
mundo", uma espécie de "falsa Natureza" sujeita a ser confundida
com a outra, a verdadeira. Na colecção de ensaios intitulada
"Mitologias", Barthes escreve: "É indubitável que a mitologia
é uma concordância com o mundo, não como ele é, mas como pretende ser".
Barthes colocava-nos perante um objectivo que
era, ao mesmo tempo, um problema: "(...) uma reconciliação entre o real e
os homens, a descrição e a explicação, o objecto e o saber", ressalvando
que "caminhamos incessantemente entre o objecto e a sua desmistificação,
incapazes de lhe conferir uma totalidade: pois, se penetramos o objecto,
libertamo-lo, mas destruímo-lo; e, se lhe deixamos o peso, respeitamo-lo, mas
devolvemo-lo ainda mistificado".
A dificuldade de resolver este dilema que
deriva da particular natureza intrínseca das mitologias ajuda à sua preservação
e pouca resistência lhe pode ser oposta. Nenhuma revolução parece capaz da
"dilaceração do mundo social".
Talvez por isso as mitologias sobrevivam.
Por excelência, Macau sempre foi um lugar
"mitológico", no sentido em que lhe estão associados discursos e
narrativas que explicam um mundo que não existe. Pelo menos, tal e qual.
Nesta terra não faltam "imagens" e
"mensagens" que mais não são do que manipulações, umas legadas pela
história, outras de criação mais recente. Os exemplos, gastos, estão aí: hoje,
como ontem, Macau é um lugar de "encontro de culturas" ou, de forma
ligeiramente menos genérica, de contacto entre o Ocidente e o Oriente, mas
apesar de pioneira e duradoura, a convivência não elimina o profundo
desconhecimento entre as várias comunidades que aqui vivem há 500 anos; hoje,
como ontem, Macau é uma "ponte" ou uma "porta de entrada"
para a China, mas apesar de infra-estruturas obsoletas e imagens gastas, dilapidadas,
nada impede que sejam usadas, por exemplo, na criação de organizações ou na
tomada de decisões, medidas e políticas que, inevitavelmente, limitar-se-ão a sublinhar
a mitologia de que Macau serve a ligação entre duas partes. A "harmonia"
e a "prosperidade", que costumeiramente são usadas nos discursos
oficiais a propósito de tudo e de nada, são outras mitologias, como qualquer
assistente social ou economista não demorarão a demonstrar.
Mas apesar da "consciência
semiológica", para usar a expressão de Guiraud, apesar de sabermos que
estamos perante mitologias e despertos inclusivamente para a sua "natureza
e poder", ou precisamente por causa disso mesmo, nada fazemos para as
"dilacerar". Ou nada podemos a não ser fazer de conta, entrar no mundo da fantasia e acreditar no
imaginário. No fundo, suspender a descrença, algo particularmente útil para não
nos sentirmos completamente alienados e fazermos parte de uma espécie de
realidade inventada. Que não deixa de ser outra alienação.
E talvez a "consciência semiológica"
explique também o receio que parece estar na origem da insistente oposição ao
referendo informal, de fazer de conta, que os activistas pró-democracia de
Macau querem organizar sobre a eleição do Chefe do Executivo por sufrágio
universal.
As associações envolvidas no processo sabem
bem que estão relegadas a um exercício que, no limite, mais não será do que um
estudo de opinião, uma sondagem, e não uma "votação"- o que não será
ilegal, como os "tradicionais" (outra mitologia) pretendem fazer
crer, mas sim apenas desprovido de "efeito jurídico", como o jurista
António Katchi explicou. Sabem, enfim, que só podem brincar à democracia.
Mas ainda que uma mera recolha de opinião,
obviamente, não tenha efeitos vinculativos, não deixa de ter significado. Previsivelmente,
o maior e mais evidente é o receio que inspira de que, à semelhança do que
acontece com as outras mitologias, fique exposto que não só a mentira é uma
realidade, como também a realidade é uma mentira. Mesmo que seja a fazer de
conta.
Publicado no jornal Hoje Macau em Julho de 2014
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