“No final dos anos 1970, dei por mim a
preferir ouvir bandas sonoras de filmes em detrimento de outro tipo de discos.
O que me atraiu nas bandas sonoras foi a sua sensualidade e a sua incompletude
– ouvindo-as sem o filme, elas convidam quem escuta a completar o filme na sua
mente. E mesmo que não se tenha visto o filme, a música continua a ser
evocativa – como o perfume de alguém que acabou de sair de uma sala onde
entramos.” As palavras são de Brian Eno, o inventor do conceito de “ambient
music”, conceito que continua as ideias de Erik Satie, o compositor francês que
pensou na música como parte do ambiente, da atmosfera, e não como o centro das
atenções. Música discreta, portanto, justamente o que Eno chamou a um disco de
1975. Desde essa altura, a teoria do músico inglês tem sido interpretada e
usada de diferentes formas e com diferentes fins, mas permanece intacta a sua
essência: a noção de que a música evolui de forma quase imperceptível, minimal,
compondo um corpo de camadas que lentamente se absorvem umas às outras e, no
limite, ao ouvinte, num jogo de sugestões.
É neste comprimento de onda que se estende a
música de Euseng Seto, malaio de Kuala Lumpur que assina como Flica alguma da
música mais deliciosamente discreta que se faz deste lado do mundo.
Depois de se ter iniciado nas lides musicais,
em 2005, com o projecto Muxu (duo com o guitarrista dos Citizens of Ice-Cream,
Huat Liang), Euseng Seto optou por uma abordagem solitária à música.
No seu quarto, munido de computador e instrumentos
como guitarra e piano, Flica compôs aquele que seria o seu álbum de estreia, “Windvane
and Window”, lançado em 2008 pela Mü-Nest, editora da Malásia que por essa
altura apresentava assim a música de Euseng Seto: “Finas camadas de sons
etéreos criando uma ambiência conduzida por delicadas melodias
electro-acústicas assentes em elegantes ritmos IDM (Intelligent Dance Music).”
E não era preciso dizer mais. O resto ficava a cargo da expressão de uma música
que se desprende de microrganismos que sugerem o labor intrincado das
complicações de um relógio e que, tal como o tempo, seguem inexoráveis e
discretos na sua missão.
Ainda em 2008, em Dezembro, surgiu o segundo
disco de Flica, “Nocturnal”, agora com selo da editora japonesa Schole, do
músico e produtor Akira Kosemura, irmão espiritual de Euseng Seto.
Em “Nocturnal”, Flica vai depurando a sua
sonoridade, já sem as vozes que se ouviam no primeiro trabalho, enquanto adensa
a melancolia que, como o paladar dos bons vinhos, ou o perfume do início deste
texto, perdura no tempo particular de um sonho.
É dessa dimensão onírica que vem o último, até
à data, disco de Flica, “Telepathy Dreams”, uma edição do autor, em 2009. Aqui,
Seto revela uma faceta mais negra, mas nunca obscura, onde sombras se movem indecisas
entre feixes de luz que são, afinal, laivos de uma tímida esperança. É a
banda-sonora de luas tranquilas, solitárias e ensimesmadas, mas no fundo esta
música pede que entremos na noite escura na companhia certa. É pedir muito, mas
não é pedir demais.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 13 de Maio de 2011
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