Ai Weiwei não gosta de música. A culpa é do
Partido Comunista que o obrigou a ouvir canções revolucionárias quando era
jovem. Apenas canções revolucionárias. Por isso, o artista mais conhecido da
China, com o primeiro disco acabado de sair, confessava à revista Smithsonian,
em 2012: “Tenho muitos amigos músicos, mas nunca ouço música”.
Um desse muitos amigos é Zuoxiao Zuzhou, um
dos pioneiros do “rock” chinês e fundador da banda No. Na verdade, Zoo X, como
também é conhecido, não é dos que, na República Popular, olham de lado para Ai
Weiwei, o artista que, apesar de raramente expor no seu país, não bater
recordes em leilões, nem ser considerado um mestre transformador do seu tempo,
foi considerado pela revista ArtReview como o artista mais poderoso de 2011.
Que Ai Weiwei, em 2013, seja o autor do disco saído da China que, muito
provavelmente, será o mais falado (senão o único) na comunicação social
internacional – está-se mesmo a ver –, apenas vai servir para atiçar ainda mais
o ódio (a inveja?) dos que vêem o artista como um narcisista que agora decidiu
usar a música para conseguir mais protagonismo.
Ora, protagonismo é o que não tem faltado a Ai
Weiwei. Aos 55 anos, a sua longa carreira nas artes já o levou a experimentar
quase todas as expressões. Apesar de saltitar entre diferentes meios, manteve
sempre um traço comum – a crítica feroz e frontal ao regime autoritário
comunista chinês. Por isso, foi várias vezes preso e vítima de agressões.
Actualmente, Ai Weiwei encontra-se proibido de viajar para fora da China - as
autoridades confiscaram-lhe o passaporte, ainda no rescaldo da última detenção,
também a mais longa – 81 dias, devido a “fraude e evasão fiscal”.
No último dia 22 de Junho, passaram dois anos
desde que foi libertado. A data foi assinalada com o lançamento de “The Divine
Comedy”.
Como seria de esperar, ao longo dos quase 30
minutos do disco, dividido em seis canções, com música de Zuoxiao Zuzhou e
letras e voz de Ai Weiwei, somos confrontados com a “experiência de Ai com as
condições da China”, lê-se no “press release” que acompanha o álbum.
“O disco inclui comentários sobre assuntos
actuais (“Just Climb the Wall”, “Hotel USA”), documentações de diálogos reais
(“Chaoyang Park”, “Laoma Tihua”), e reflexões pessoais (“Give Tomorrow Back to
Me”, “Dumbass”)". A música? “O disco atravessa géneros musicais com
influências da ‘pop’, ‘rock’, ‘punk’ e ‘heavy metal’”.
Em Maio, num encontro com jornalistas, no seu
estúdio, Ai Weiwei contou que a ideia de usar música surgiu após “pensar sobre
como recuperar de um trauma” e “ transmitir um sentimento tremendamente secreto
e privado para o público”. E assim surgiu o disco, o “single” “Dumbass” e o
respectivo vídeo realizado por Christopher Doyle, o director de fotografia
australiano mais conhecido pelo trabalho feito com os realizadores Wong Kar-wai
e Zhang Yimou.
No vídeo assistimos a uma encenação do que
terão sido os 81 dias de cativeiro de Ai Weiwei, constantemente vigiado de
perto por dois guardas que não descolam nem quando o prisioneiro dorme ou faz
as necessidades. Mais ou menos a meio, os papéis invertem-se e é Ai Weiwei que
vemos, vestido de polícia, a chicotear os jovens guardas enquanto tomam banho.
Logo a seguir, o artista transforma-se de prisioneiro acompanhado por dois
carrascos em celebridade ladeada por duas modelos em roupa íntima. A
metamorfose completa-se já perto do final, quando surge um Ai Weiwei careca e
sem barba vestido de mulher, de lábios pintados, tanto se assemelhando a um
travesti como à figura de Buda. Ai Weiwei explica que são fantasias que se
desenrolam na cabeça dos guardas, descritos ao New York Times como
“prisioneiros que nunca abandonam o edifício” onde esteve detido, e que “nada
sabem do que se passa, fazendo perguntas, secretamente, acerca de sexo e de muitas
outras coisas”. E que se surpreendiam quando ouviam Ai Weiwei atacar um
repertório extenso de antigos êxitos do cancioneiro comunista e revolucionário.
Agora, em liberdade, Ai Weiwei diz a plenos
pulmões: “Quero mostrar aos mais jovens que todos podemos cantar”.
E ele canta, mas não no primeiro tema, “Just
Climb the Wall”, um dos melhores – “rock” quebrado que imediatamente faz
lembrar o último Nick Cave, com Ai Weiwei em registo “spoken word”, melancólico
e pesaroso, como um lamento. Aparentemente, é uma referência à “Grande
Firewall” da China, o poderoso sistema de censura na Internet, e também uma
alusão à fuga do companheiro dissidente Chen Guangcheng, exilado nos Estados
Unidos. A letra é cristalina: “This road leads to the West, keep going forth. Quick,
climb the wall; the flowers are blooming along the way”.
A odisseia de Cheng Guangcheng também se
pressente, mais a esperança nos amanhãs que cantam e, em particular, no
Ocidente, em “Hotel USA”: “Go west along East Eastern Road, there’s a motel
from America. A blind man bummed his way in, and the inn-keeper freaked out”.
“Chaoyang Park”, “rock” de tendências
industriais, tenso, tem o nome de um parque de Pequim que, em 2012, foi palco
de confrontos entre “bloggers” rivais. Ai esteve lá: “Are you still following
me? I won’t do it anymore. Tell me, what’s your name? Beat me and I won’t tell.
Give my cell phone back. Delete those pictures now. I have a wife and a child
too. I can’t remember their phone numbers”.
“Laoma Tihua” descreve o que se passou em Sichuan,
quando Ai Weiwei, em 2009, depois do sismo que matou dezenas de milhar de
pessoas, visitou Chengdu com o intuito de recolher os nomes das crianças que
morreram em escolas de construção deficiente: “Who’s knocking on the door?
We’re all police.Why are you breaking in? To teach you a lesson, kid.” Ai Weiwei sofreu
agressões da polícia que lhe valeram uma cirugia ao cérebro, mas não esmoreceu.
Em "The Divine Comedy", antes do
derradeiro “Dumbass”, vitríola “hard rock”, há “Give Tomorrow Back to Me”, canção
de tonalidades “folk”, com direito a acordeão, em que Ai Weiwei dirige-se aos
poderosos: “You own the skies, you are the banker, you own the water cannon,
and the bullets, but the bullet wounds are mine.” E avisa: “Yesterday is yours,
today is yours, but you won’t have tomorrow”.
Meia hora depois dos primeiros sons da mais
recente obra de Ai Weiwei percebemos que na música, como na restante arte de
Ai, o que conta é o próprio Ai Weiwei, a sua presença, a sua identidade, o
chamado efeito “AWW” – ele e nada mais. Não importa que a sua voz seja pouco ou
nada melodiosa, que não saiba cantar, ou que as letras não seja poesia de fino
recorte. O que interessa é que é Ai Weiwei, e cada som seu é uma prova (como as
fotografias que tira, constantemente, registando tudo e todos), um documento do
real elevado para transcender qualquer outra narrativa ou ficção. Arte? Ai
Weiwei faz-nos crer que sim.
Na nota de imprensa relativa ao disco,
escreve-se que “cada canção é uma visão particular do novo canal que Ai encontrou para se exprimir através da
música”. Talvez Ai Weiwei já goste de música. Ou então não, e este disco é
apenas a continuidade da recusa e a resposta negativa, irada, às cantigas
comunistas que o forçaram a escutar até à náusea. O regime tem razão: Ai Weiwei
é um "punk".
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 5 de Julho de 2013
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