sábado, 8 de agosto de 2015

Música contra a lassidão


“Life is too short for boring music” (“A vida é curta demais para música aborrecida”). Nunca mais esqueci esta frase que vi, pela primeira vez, na página electrónica da extinta EFA, a distribuidora de editoras independentes que levava a sério os anúncios que fazia. É verdade: não podemos desperdiçar tempo, que é insuficiente, com o que não merece. Este truísmo assume particular evidência no momento em que vivemos, marcado por uma profusão inédita de música a que se junta a do passado, tudo disponibilizado através de um acesso mais facilitado do que nunca. Em teoria, toda a história da música alguma vez gravada pode ser armazenada num único computador ou numa “nuvem”, as modernas “clouds” que nos seguem para todo o lado.

Esta forma promíscua de passado e presente conviverem lado a lado com as distâncias temporais esbatidas (longe mas perto, velho mas novo, sempre à nossa inteira e imediata disposição) tem, entre outros, impacto na forma como é produzida actualmente muita música, especialmente aquela em que diferentes eras, tradições, géneros ou culturas são condensadas para caber em cinco minutos.
No fundo, o que nomes como DJ Shadow, Flying Lotus ou Gonja Sufi (e o Kanye West de “Yeezus”, já agora) fazem juntando pedaços distantes da história da música pode ser comparado às voltas alucinantes do Super-Homem em torno da Terra, quebrando a barreira do tempo e do espaço. Literalmente supersónico.

Yosi Horikawa não se lança propriamente na ultrapassagem da barreira do som, nem nesse exercício de arqueologia digital só tornado possível pela tecnologia, mas através da música que produz procura combater a erosão que a passagem do tempo provoca na percepção dos ouvinte actuais, habituados a estímulos constantes e a torrentes de informação (sobretudo na Internet, onde tudo se passa), constantemente distraídos e com a capacidade de concentração de borboletas que cedo se esgotam e se entregam à apatia e à indiferença. E é isto que Yosi Horikawa teme: que quem escuta a sua música se entedie.

A confissão tem sido repetida nas entrevistas a propósito do álbum de estreia, “Vapor”, onde o japonês de 34 anos combate o medo da música “chata” explorando um espectro sonoro alargado que não dispensa a repetição (“loops”), mas que investe tudo em “fluxos” e “desenvolvimentos” – expressões usadas por Yosi à Red Bull Music Academy, onde foi “aluno” quando a escola de música electrónica itinerante estacionou em Madrid, em 2011.

Em “Vapor”, diz Yozi Horikawa ao Japan Times, há temas que têm cerca de uma centena de camadas de sons e efeitos – sons reais, electrónicos, acústicos, da natureza, mas também “samples” de diversas fontes –, codificados em linguagens que vão do “hip-hop” ao “jazz”, passando pelo “ambient” versão “chill out”, pela música experimental ou pela “house music”. Por vezes, os diferentes géneros sucedem-se no mesmo tema, desdobrando-se numa progressão que, nos momentos finais do disco, em fase de desaceleração, adquire os poderes da hipnose e quase nos abandona à letargia.

Mas é nos diferentes estratos das sonoridades que nos fixamos a maior parte do tempo, sem sabermos ao que prender a atenção, se à melodia das linhas sintéticas, aos ritmos, aos baixos ou aos detalhes que conseguimos perceber depois de nos abstrairmos da quase cacofonia.

Tematicamente, a música de Yosi Horikawa ocupa-se de prazeres simples (“Beer”) ou reminiscências da infância (“Summer in 1987”), sempre com o mesmo cuidado de que a história que nos é contada seja cativante e que a atracção ao som pelo som seja permanente. Atravessa o disco ainda um fascínio pela natureza manifesto no uso de sons de animais, da chuva ou da trovoada, mas também no modo como os temas são selvas de sons – com a organização natural própria de ecossistemas, funções complementares e o alheamento ao destino que liberta os seres vivos para a fruição de cada momento, ou seja, cada som.

“Vapor” é um disco marcado pelo corrupio interior do seu autor que tem reflexo na forma intrincada como a música é arquitectada, mesmo que Yosi se abandone, na maior parte do tempo, a hábitos de placidez (“Wandering”, “Rainbow”, “Letters”), ou mesmo que, findo o último tema, da complexidade das 16 faixas tenhamos retido apenas uma impressão vaga. Um vapor. Todavia, é o que basta para incensar a vontade de voltar a ouvir tudo. Do princípio.

“Vapor”
Yosi Horikawa

First Word Records, 2013

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 12 de Julho de 2013

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