sábado, 8 de agosto de 2015

Amor de distorção



Mesmo que padecendo de “retromania” aguda (Simon Reynolds explica), de quando em quando, o mundo da música ainda vai sendo sobressaltado por notícias de regressos que geram uma genuína comoção. No topo dos mais aguardados estavam, havia mais de 20 anos, os My Bloody Valentine, que, desde "Loveless" (1991), disco que ajudou a redefinir o significado de “seminal” e o estatuto de “culto”, optaram pelo silêncio, apenas entrecortado, aqui e ali, ora por rumores de um novo disco, ora por novas músicas de Kevin Shields (compositor, vocalista e guitarrista) a solo, como aconteceu na banda sonora do filme “Lost in Translation”, de Sofia Coppola. Dizia eu que “estavam” os My Bloody Valentine, porque já não estão.

Foi no último dia 2 de Fevereiro que a banda irlandesa pôs, finalmente, cá fora o seu terceiro álbum, simplesmente intitulado “m b v”. Porque não há fome que não dê em fartura, uns dias antes, 23 de Janeiro, foi editado, a partir do Japão, um aperitivo: “Yellow Loveless”, um álbum de homenagem em que todos os 11 temas de “Loveless” são alvo de versões por artistas japoneses.

Desde o início, a influência dos My Bloody Valentine, e de “Loveless” em particular, foi um fenómeno que a passagem do tempo não esmoreceu, muito pelo contrário. Do segundo disco dos irlandeses poder-se-ia dizer o que alguém terá dito a propósito do primeiro disco dos Velvet Underground: “‘The Velvet Underground & Nico’ vendeu apenas alguns milhares de cópias, mas toda a gente que comprou o disco formou uma banda.” Em termos de influência e de definição da história em que se inscrevem, de facto, poucos discos há como o primeiro da antiga banda de Lou Reed e como o segundo da banda de Kevin Shields.

No caso dos My Bloody Valentine, uma das marcas indeléveis é o som que conseguiram criar (e que continua a ser alvo de imitações) com recurso a vários efeitos e técnicas – desde a distorção ao “delay”, reverberações, alterações dos tempos, “sampling” –, tudo congeminado para erguer muralhas sónicas de intransponíveis guitarras que pareciam amparar com inusitada ternura vozes tímidas, algo frágeis mas orgulhosamente melodiosas. E encantadoras.

A par com os Cocteau Twins e The Jesus & Mary Chain, os My Bloody Valentine são os lídimos representantes do “shoegaze”, o género que foi buscar nome à atitude flácida dos elementos das bandas em palco, sempre com os olhos pregados no chão, onde se estendiam os pedais que processavam os efeitos das guitarras.

Passados cerca de 20 anos, um pouco por toda a Ásia a cena “shoegazing” tem ainda hoje inúmeros adeptos, em particular nas Filipinas e na Indonésia. Também o Japão tem a sua quota-parte de guitarristas ensimesmados, alguns dos quais picam o ponto em “Yellow Loveless” (casos dos Tokyo Shoegazer, que assinam duas versões competentes, mas muito coladas aos originais, “Only Shallow” e “I Only Said”, e também dos Lemon’s Chair, a outra banda responsável por dois temas que não fogem muito dos originais, “To Here Knows When” e “What You Want”). Todavia, esta homenagem nipónica não se fica pela reverência aturdida e, como na frase de Newton, há quem suba aos ombros dos gigantes para ver mais longe.

Um dos melhores momentos do disco, porque um dos mais inesperados, deve-se às Shonen Knife, que se lançam à transformação de “When You Sleep” num rebuçado “yé-yé”, com direito a coros e tudo; é como se as imensas camadas do original fossem descascadas até sobrar apenas a melodia que os My Bloody Valentine sempre foram hábeis em esconder.

Outro momento memorável pertence aos GOATBED, senhores de uma electrónica bizarra que mergulha “Loomer” numa solução feita à base de ácido que coloca os My Bloody Valentine junto de contemporâneos mas distantes “ravers” espalhados algures num campo verde britânico.

Um dos temas mais emblemáticos de “Loveless”, “Touched”, instrumental com apenas 56 segundos na versão original, é aqui estendido pelos Sodom Project, que cometem a proeza de perpetrar uma quebra “dubstep” num tema dos My Bloody Valentine.

“Sometimes”, talvez o tema mais conhecido de “Loveless”, é apresentado neste disco a cargo dos Boris, o grupo experimental que funde “metal”, “noise”, “ambient” e o que mais estiver à mão. Distendendo o tempo original de “Sometimes”, os Boris acentuam as qualidades planadoras de uma música que, apesar de ter os olhos postos no chão, teve sempre, afinal, a cabeça e o coração noutro lugar.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 15 de Fevereiro de 2012 

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