Mesmo que padecendo de “retromania” aguda
(Simon Reynolds explica), de quando em quando, o mundo da música ainda vai
sendo sobressaltado por notícias de regressos que geram uma genuína comoção. No
topo dos mais aguardados estavam, havia mais de 20 anos, os My Bloody
Valentine, que, desde "Loveless" (1991), disco que ajudou a redefinir
o significado de “seminal” e o estatuto de “culto”, optaram pelo silêncio,
apenas entrecortado, aqui e ali, ora por rumores de um novo disco, ora por
novas músicas de Kevin Shields (compositor, vocalista e guitarrista) a solo,
como aconteceu na banda sonora do filme “Lost in Translation”, de Sofia
Coppola. Dizia eu que “estavam” os My Bloody Valentine, porque já não estão.
Foi no último dia 2 de Fevereiro que a banda
irlandesa pôs, finalmente, cá fora o seu terceiro álbum, simplesmente
intitulado “m b v”. Porque não há fome que não dê em fartura, uns dias antes,
23 de Janeiro, foi editado, a partir do Japão, um aperitivo: “Yellow Loveless”,
um álbum de homenagem em que todos os 11 temas de “Loveless” são alvo de
versões por artistas japoneses.
Desde o início, a influência dos My Bloody
Valentine, e de “Loveless” em particular, foi um fenómeno que a passagem do
tempo não esmoreceu, muito pelo contrário. Do segundo disco dos irlandeses
poder-se-ia dizer o que alguém terá dito a propósito do primeiro disco dos
Velvet Underground: “‘The Velvet Underground & Nico’ vendeu apenas alguns
milhares de cópias, mas toda a gente que comprou o disco formou uma banda.” Em
termos de influência e de definição da história em que se inscrevem, de facto,
poucos discos há como o primeiro da antiga banda de Lou Reed e como o segundo
da banda de Kevin Shields.
No caso dos My Bloody Valentine, uma das
marcas indeléveis é o som que conseguiram criar (e que continua a ser alvo de
imitações) com recurso a vários efeitos e técnicas – desde a distorção ao
“delay”, reverberações, alterações dos tempos, “sampling” –, tudo congeminado
para erguer muralhas sónicas de intransponíveis guitarras que pareciam amparar
com inusitada ternura vozes tímidas, algo frágeis mas orgulhosamente
melodiosas. E encantadoras.
A par com os Cocteau Twins e The Jesus &
Mary Chain, os My Bloody Valentine são os lídimos representantes do “shoegaze”,
o género que foi buscar nome à atitude flácida dos elementos das bandas em
palco, sempre com os olhos pregados no chão, onde se estendiam os pedais que
processavam os efeitos das guitarras.
Passados cerca de 20 anos, um pouco por toda a
Ásia a cena “shoegazing” tem ainda hoje inúmeros adeptos, em particular nas
Filipinas e na Indonésia. Também o Japão tem a sua quota-parte de guitarristas
ensimesmados, alguns dos quais picam o ponto em “Yellow Loveless” (casos dos Tokyo
Shoegazer, que assinam duas versões competentes, mas muito coladas aos
originais, “Only Shallow” e “I Only Said”, e também dos Lemon’s Chair, a outra
banda responsável por dois temas que não fogem muito dos originais, “To Here
Knows When” e “What You Want”). Todavia, esta homenagem nipónica não se fica
pela reverência aturdida e, como na frase de Newton, há quem suba aos ombros
dos gigantes para ver mais longe.
Um dos melhores momentos do disco, porque um
dos mais inesperados, deve-se às Shonen Knife, que se lançam à transformação de
“When You Sleep” num rebuçado “yé-yé”, com direito a coros e tudo; é como se as
imensas camadas do original fossem descascadas até sobrar apenas a melodia que
os My Bloody Valentine sempre foram hábeis em esconder.
Outro momento memorável pertence aos GOATBED,
senhores de uma electrónica bizarra que mergulha “Loomer” numa solução feita à
base de ácido que coloca os My Bloody Valentine junto de contemporâneos mas
distantes “ravers” espalhados algures num campo verde britânico.
Um dos temas mais emblemáticos de “Loveless”,
“Touched”, instrumental com apenas 56 segundos na versão original, é aqui
estendido pelos Sodom Project, que cometem a proeza de perpetrar uma quebra
“dubstep” num tema dos My Bloody Valentine.
“Sometimes”, talvez o tema mais conhecido de
“Loveless”, é apresentado neste disco a cargo dos Boris, o grupo experimental
que funde “metal”, “noise”, “ambient” e o que mais estiver à mão. Distendendo o
tempo original de “Sometimes”, os Boris acentuam as qualidades planadoras de
uma música que, apesar de ter os olhos postos no chão, teve sempre, afinal, a
cabeça e o coração noutro lugar.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 15 de Fevereiro de 2012
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