Apesar de Norah Jones e apesar de David
Strathairn, “My Blueberry Nights” (2007) foi um indício doloroso de que algo se
passava de errado com Wong Kar-wai. Pelo que se lê e ouve sobre o mais recente
filme, “The Grandmaster”, confirma-se, aparentemente, que amontoar clichés é
agora o ofício de um realizador que, nos seus melhores momentos, encenava
poesia, amor e perda (não necessariamente por esta ordem) como ninguém.
Mas
ainda que Wong Kar-wai dedique o resto dos dias a filmes medíocres, será
impossível fazer-nos esquecer o que já imortalizou: um certo olhar sobre Hong
Kong (e sobre Macau, onde recriou a antiga colónia britânica), uma estética e
um imaginário que têm tanto de sensível (real e visível) como de intangível
(ilusório e fugidio).
Com as devidas distâncias, essa referência – ou
experiência –, é convocada agora por Davwuh, produtor de Liverpool que, no
início deste ano, lançou o álbum “Hong Kong”.
São 76 minutos de electrónica
feita de baixos graves e sussurrantes, ambientes negros e carregados como o céu
de Hong Kong, ‘arpeggios’ fantasmagóricos e vozes espectrais, que tanto nos
remetem para o tempo sem passado nem futuro de certos filmes de Wong Kar-wai,
como para a origem do “dubstep” e do “future garage”, ou seja, Londres, a metrópole
cinzenta. Mas aquilo que poderia ser um bom ponto de partida acaba também por
se revelar, em vários momentos do disco, um ponto morto, uma vez que Davwuh
pouco arrisca e pouco se afasta das zonas de influência.
Seja por fascínio ou preguiça (ou as duas
coisas juntas), há em “Hong Kong” uma colagem por vezes excessiva (expressa,
por exemplo, nos títulos “Room 2046”, “In The Mood For Love”, etc.) a um
imaginário alheio que acaba por filtrar a nossa visão ao ponto de tornar
indefinido o que é mera citação e o que é mera cópia. O mesmo se aplica, aqui e
ali, às influências musicais, bebidas sobretudo nas produções de outro inglês,
Burial (de resto, uma inspiração confessa de Davwuh, a par com Joy O e Skream,
também “perceptíveis”).
Mas do mesmo modo que existem más influências
(ainda que boas), é justo realçar que também há ascendentes com efeitos
positivos. “Hong Kong” não ignora essa circunstância. “Syncing Feeling”, por
exemplo, serviria apropriadamente de banda sonora de um encontro fortuito e
desejado numa qualquer plataforma futurista de “2046”, e “Kowloon Haze”, com
pulsar irregular e linhas sintéticas dramáticas expectantes, ajuda a pintar um
amanhecer fora de horas e solitário nas “mansões” de Chungking. Noutros
momentos particularmente felizes (“Soul Connection”, “Iridescent Sky”, “Their
Eyes Meet”), nem sequer nos lembramos de Wong Kar-wai ou de Burial. No entanto,
continua lá o ambiente cinemático, desta feita abstraído de ligações concretas
a este ou àquele universo.
Em boa parte das 16 faixas de “Hong Kong” está
explícito o poder sugestivo da música de Davwuh, ligada à grande tela das salas
escuras desde logo pela forma como o produtor apresenta o disco, no mesmo jeito
com que um argumentista descreve uma cena: “A man, a woman. Eyes meet through
the steam of food stands. The high rises light up the night sky, reflections
ripple in the harbour.”
Deste disco pode-se dizer que oferece, a
espaços, a banda sonora ideal para uma incursão às artérias mais recônditas de
Hong Kong, numa missão esperada desembocar no porto de onde avistamos com
esplendor os arranha céus e os néon a dançarem na superfície escura do rio. Aí
chegados, que se desenrolem filmes, mas dos imaginários e não dos outros que já
vimos vezes e vezes sem conta.
“Hong
Kong”
www.davwuh.bandcamp.com
2013
Davwuh
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 1 de Fevereiro de 2013
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