sábado, 8 de agosto de 2015

Cidade repetida



Apesar de Norah Jones e apesar de David Strathairn, “My Blueberry Nights” (2007) foi um indício doloroso de que algo se passava de errado com Wong Kar-wai. Pelo que se lê e ouve sobre o mais recente filme, “The Grandmaster”, confirma-se, aparentemente, que amontoar clichés é agora o ofício de um realizador que, nos seus melhores momentos, encenava poesia, amor e perda (não necessariamente por esta ordem) como ninguém. 

Mas ainda que Wong Kar-wai dedique o resto dos dias a filmes medíocres, será impossível fazer-nos esquecer o que já imortalizou: um certo olhar sobre Hong Kong (e sobre Macau, onde recriou a antiga colónia britânica), uma estética e um imaginário que têm tanto de sensível (real e visível) como de intangível (ilusório e fugidio). 

Com as devidas distâncias, essa referência – ou experiência –, é convocada agora por Davwuh, produtor de Liverpool que, no início deste ano, lançou o álbum “Hong Kong”. 

São 76 minutos de electrónica feita de baixos graves e sussurrantes, ambientes negros e carregados como o céu de Hong Kong, ‘arpeggios’ fantasmagóricos e vozes espectrais, que tanto nos remetem para o tempo sem passado nem futuro de certos filmes de Wong Kar-wai, como para a origem do “dubstep” e do “future garage”, ou seja, Londres, a metrópole cinzenta. Mas aquilo que poderia ser um bom ponto de partida acaba também por se revelar, em vários momentos do disco, um ponto morto, uma vez que Davwuh pouco arrisca e pouco se afasta das zonas de influência.

Seja por fascínio ou preguiça (ou as duas coisas juntas), há em “Hong Kong” uma colagem por vezes excessiva (expressa, por exemplo, nos títulos “Room 2046”, “In The Mood For Love”, etc.) a um imaginário alheio que acaba por filtrar a nossa visão ao ponto de tornar indefinido o que é mera citação e o que é mera cópia. O mesmo se aplica, aqui e ali, às influências musicais, bebidas sobretudo nas produções de outro inglês, Burial (de resto, uma inspiração confessa de Davwuh, a par com Joy O e Skream, também “perceptíveis”). 

Mas do mesmo modo que existem más influências (ainda que boas), é justo realçar que também há ascendentes com efeitos positivos. “Hong Kong” não ignora essa circunstância. “Syncing Feeling”, por exemplo, serviria apropriadamente de banda sonora de um encontro fortuito e desejado numa qualquer plataforma futurista de “2046”, e “Kowloon Haze”, com pulsar irregular e linhas sintéticas dramáticas expectantes, ajuda a pintar um amanhecer fora de horas e solitário nas “mansões” de Chungking. Noutros momentos particularmente felizes (“Soul Connection”, “Iridescent Sky”, “Their Eyes Meet”), nem sequer nos lembramos de Wong Kar-wai ou de Burial. No entanto, continua lá o ambiente cinemático, desta feita abstraído de ligações concretas a este ou àquele universo.

Em boa parte das 16 faixas de “Hong Kong” está explícito o poder sugestivo da música de Davwuh, ligada à grande tela das salas escuras desde logo pela forma como o produtor apresenta o disco, no mesmo jeito com que um argumentista descreve uma cena: “A man, a woman. Eyes meet through the steam of food stands. The high rises light up the night sky, reflections ripple in the harbour.”
Deste disco pode-se dizer que oferece, a espaços, a banda sonora ideal para uma incursão às artérias mais recônditas de Hong Kong, numa missão esperada desembocar no porto de onde avistamos com esplendor os arranha céus e os néon a dançarem na superfície escura do rio. Aí chegados, que se desenrolem filmes, mas dos imaginários e não dos outros que já vimos vezes e vezes sem conta.

“Hong Kong”
www.davwuh.bandcamp.com
2013

Davwuh

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 1 de Fevereiro de 2013

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