sábado, 8 de agosto de 2015

Areia preta


A pouco e pouco, a série sobre a diáspora asiática espalhada por esse “underground” fora vai sendo alargada. Depois de Onra e Vihn (Triad God), as boas vindas sejam dadas a Alex Zhang Hungtai, o músico nascido em Taipé, Taiwan, que é mais conhecido por Dirty Beaches.

Dos frutos da emigração oriental que já passaram por estas páginas e de outros que hão-de passar pode dizer-se que, na música que fazem, uns são mais devedores do que outros da herança oriental que carregam. No entanto, um traço atravessa todos: a procura das raízes enquanto missão (mais ou menos) espiritual.

No caso de Alex Zhang Hungtai, radicado no Canadá depois de uma infância e adolescência nómadas, a epifania é recente e deve-se a uma digressão que o trouxe, em Fevereiro deste ano, a Hong Kong, Japão, Coreia do Sul e Austrália. A impressão perdurou fortemente, como o próprio reconheceu, em Março, no seu blogue: “Esta viagem fez com que percebesse que, independentemente do quão longe me deixei arrastar à deriva, lá bem no fundo serei sempre um filho do Oceano Pacífico”.

Assim dito pelo próprio, preto no branco, torna-se fácil e evidente perceber a conotação extremamente oriental da música de Dirty Beaches, mas nas dezenas de gravações que Alex Zhang Hungtai vem publicando desde 2007 encontramos essa ligação umbilical intacta algures na miríade de referências que parecem conter tantas luzes reflectidas como um espelho partido virado para o céu nocturno de um deserto.

Com Alex Zhang Hungtai, tudo aponta para algum lado. Tudo, na música e na imagem, é pensado e cuidado como alusão.

No centro de tudo, a ideia de viagem. No espaço e no tempo. O passado é o destino, mas a ele regressamos através de uma reconstrução pessoalíssima que tem por coordenadas blues, rock’n’roll, Elvis, Suicide, máquinas fantasmagóricas, néon, estradas perdidas, restaurantes desertos, brilhantina, casacos de cabedal, olhos semicerrados, cigarros no canto da boca, sombras solitárias, noite, noite e noite.

Nestes anos 1950 imaginados, desembarcamos numa praia que podia ser nas Filipinas. Estamos no pós-guerra. O sonho e o optimismo hão-de varrer a Ásia e o Pacífico. A influência norte-americana faz-se sentir como nunca. A música conquista tudo e todos, transformados em heróis e heroínas de sonho e chita.

“Badlands”, disco de 2011 que catapultou Dirty Beaches do obscurantismo das edições de autor, cristalizou o personagem que vive animado por todas as influências reclamadas por Alex Zhang Hungtai. É o rebelde sem causa e sem amor à maneira de Leslie Cheung em “Days of Being Wild”, de Wong Kar-wai, disposto a ir longe para nada.

Numa entrevista recente ao Pitchfork.com, o homem por detrás do nome Dirty Beaches confessa-se empenhado em fugir da “construção” de “Badlands”, onde procurou criar “um universo que não existe”.

A fuga levou-o ao disco mais recente, o duplo “Drifters/Love Is The Devil”, apresentado como “mais pessoal” e um testemunho dos últimos dois anos da vida de Alex Zhang Hungtai, marcados por uma separação amorosa (que de “amorosa” nada teve). “Love is the Devil”, o tema que empresta o título à segunda parte do álbum, serve de amostra: uma marcha funesta instrumental que se arrasta com pesar e a custo deixa que assome uma melodia que parece reminiscente das partituras que Angelo Badalamenti escreveu para “Twin Peaks”, de David Lynch. Por momentos, levita-se.

Inicialmente pensado como um disco de cariz mais experimental, “Drifters/Love Is The Devil”, sobretudo a primeira parte, é no entanto mais acessível que outros trabalhos de Dirty Beaches. As influências, na maioria, repetem-se, mas numa sonoridade ligeiramente mais limpa, menos rugosa e abrasiva. Os ritmos, que em “Badlands” eram industriais, minimais e repetitivos, são agora de cadências menos frenéticas. Por vezes, o “groove” aparece, tímido (em “Mirage Hall” até há “slap bass”).

Tal com no disco anterior, continuamos “on the road”, mas aqui o itinerário é mais ocidental – há passagens pelo “Casino Lisboa”, o quarto tema do alinhamento de “Drifters”, ou “Belgrade”, e diz-se “Au Revoir Mon Visage”.

De sítio para sítio, e por mais âncoras que lance, Alex Zhang Hungtai parece condenado à deriva, a dizer adeus, a esquecer e a redescobrir que a areia preta da praia é feita, afinal, das cinzas do que no passado ardeu e só no passado renascerá.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 19 de Abril de 2013

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