Houve um tempo em que subir montanhas para
apreciar, do alto, os mistérios e as maravilhas da natureza ia contra os
ditames religiosos medievos. Mais acertado, aos divinos olhos decifrados pelos
santos homens, como Agostinho, era revirar a contemplação para dentro. Nada é
tão admirável e grandioso como a mente, anunciava-se. Mas desde que Petrarca
subiu a uma montanha, no Sul de França, com o simples propósito de apreciar a
paisagem, nunca mais Razão e Natureza foram olhadas da mesma forma, tendo uma
começado a ver-se na outra. Desde o padre, poeta e surpreendente alpinista que
as paisagens têm “alma”, tal como as que o homem guarda no seu interior,
manifestando-se por extensão e projecção.
Conforme nota Werner Hofmann, no livro “The
Abstraction of Landscape – From Northern Romanticism to Abstract
Expressionism”, esta “visão antropocêntrica do mundo permitiu acrescentar uma
expressão de subjectividade à objectividade de uma perspectiva central”.
Finalmente, “o homem torna-se parte da natureza que isolamos do todo cósmico a
que chamamos ‘paisagem’”.
A pintura, de Friedrich a Kiefer, tem sido um
reino prodigioso de olhares, almas e paisagens que se cruzam nas formas, nos
tempos e nos espaços, mas o mesmo se pode dizer da música. Brian Eno, por
exemplo, tem uma vida dedicada a imaginar sons que simplesmente sirvam de
“papel de parede” de lugares, quadros reais, ambientes. Outras abordagens,
menos “discretas”, abundam. Uma das mais evocativas e peculiarmente modernas é
a do japonês Ametsub, que tem uma tendência particular para coordenar no mesmo
plano natureza e tecnologia, duas entidades transformadas em “instrumentos”.
A “veia paisagista” (chamemos-lhe assim) de
Ametsub tornou-se saliente no disco “The Nothings of the North”, de 2009, brilhante
álbum (com um título revelador), o segundo da carreira, que nos leva a cumes
para perdermos a vista descendo por vales e rios de lava, estepes nevadas e
silenciosas, filas de árvores por entre as quais o som se movimenta e foge
quando as clareiras abrem o horizonte.
Pianista de formação, Ametsub tecla frases de
melancolia a que junta microrganismos electrónicos dispostos como um carrilhão
que repica sob o impulso de erros, desordenados “glitchs” de computadores
carrancudos mas enfim resignados, vozes estilhaçadas feitas arritmias, “clicks
and cuts” formando padrões em permanente expansão, fluindo indiferentes ao
leito que o caudal define a par e passo – jazz, hip-hop, techno “dubby” e
borbulhante, ambient, tudo vibra nesta música de pormenores infinitos, sem
palavras, mas eloquente. Como as paisagens, mesmo as áridas, “sem nada”, do
norte.
Abrindo mundos a quem o escutou, “The Nothings
of the North” abriu portas a Ametsub. Ryuichi Sakamoto escolheu o disco como “o
melhor de 2009”. A prestigiada Mille-Plateaux ofereceu-se para o reeditar. Nos
últimos quatro anos, Ametsub tem alinhado nos cartazes de diversos festivais em
todo o mundo, ao lado de nomes como Plaid, Cornelius, Fennesz, Atom™, Vladislav
Delay, Moritz Von Oswald, Alva Noto ou Tujiko Noriko.
Dessas muitas viagens resultou, no ano
passado, o disco “All is Silence”, gravado em Tóquio, Reiquiavique, Grimsey,
Madrid e Gijon.
Fazendo maior uso de “field recordings”, mais
ligado à terra, ao chão, “All is Silence” continua, como “Nothings of the
North”, a condensar e interpretar vibrações telúricas que Ametsub vai
desprendendo na forma de fotogramas oníricos. Na intersecção dos elementos
orgânicos e electrónicos, a música ganha sustento, enquanto pairam as imagens
sugeridas, ora rentes ao solo, murmurantes, ora altas na imaginação das nuvens.
Ainda a melancolia, ainda (e cada vez mais) jazz, experimentações e devaneios
electrónicos, o piano, as melodias envolventes e desatadas, o som com mais
dimensão, perspectiva e horizonte – mais espaço, portanto, para nos perdermos.
“No man is an island entire of itself; every
man is a piece of the continent, a part of the main”, diz o poema de John Donne,
explicando-nos que, neste mundo, não andamos sozinhos. Nem quando andamos
desnorteados na natureza, abstraídos e meditabundos, como se estivéssemos no
mundo, mas fora dele.
Publicado no Hoje Macau no dia 26 de Abril de 2013
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