sábado, 8 de agosto de 2015

No mundo, fora do mundo



Houve um tempo em que subir montanhas para apreciar, do alto, os mistérios e as maravilhas da natureza ia contra os ditames religiosos medievos. Mais acertado, aos divinos olhos decifrados pelos santos homens, como Agostinho, era revirar a contemplação para dentro. Nada é tão admirável e grandioso como a mente, anunciava-se. Mas desde que Petrarca subiu a uma montanha, no Sul de França, com o simples propósito de apreciar a paisagem, nunca mais Razão e Natureza foram olhadas da mesma forma, tendo uma começado a ver-se na outra. Desde o padre, poeta e surpreendente alpinista que as paisagens têm “alma”, tal como as que o homem guarda no seu interior, manifestando-se por extensão e projecção.

Conforme nota Werner Hofmann, no livro “The Abstraction of Landscape – From Northern Romanticism to Abstract Expressionism”, esta “visão antropocêntrica do mundo permitiu acrescentar uma expressão de subjectividade à objectividade de uma perspectiva central”. Finalmente, “o homem torna-se parte da natureza que isolamos do todo cósmico a que chamamos ‘paisagem’”.

A pintura, de Friedrich a Kiefer, tem sido um reino prodigioso de olhares, almas e paisagens que se cruzam nas formas, nos tempos e nos espaços, mas o mesmo se pode dizer da música. Brian Eno, por exemplo, tem uma vida dedicada a imaginar sons que simplesmente sirvam de “papel de parede” de lugares, quadros reais, ambientes. Outras abordagens, menos “discretas”, abundam. Uma das mais evocativas e peculiarmente modernas é a do japonês Ametsub, que tem uma tendência particular para coordenar no mesmo plano natureza e tecnologia, duas entidades transformadas em “instrumentos”.

A “veia paisagista” (chamemos-lhe assim) de Ametsub tornou-se saliente no disco “The Nothings of the North”, de 2009, brilhante álbum (com um título revelador), o segundo da carreira, que nos leva a cumes para perdermos a vista descendo por vales e rios de lava, estepes nevadas e silenciosas, filas de árvores por entre as quais o som se movimenta e foge quando as clareiras abrem o horizonte.

Pianista de formação, Ametsub tecla frases de melancolia a que junta microrganismos electrónicos dispostos como um carrilhão que repica sob o impulso de erros, desordenados “glitchs” de computadores carrancudos mas enfim resignados, vozes estilhaçadas feitas arritmias, “clicks and cuts” formando padrões em permanente expansão, fluindo indiferentes ao leito que o caudal define a par e passo – jazz, hip-hop, techno “dubby” e borbulhante, ambient, tudo vibra nesta música de pormenores infinitos, sem palavras, mas eloquente. Como as paisagens, mesmo as áridas, “sem nada”, do norte.

Abrindo mundos a quem o escutou, “The Nothings of the North” abriu portas a Ametsub. Ryuichi Sakamoto escolheu o disco como “o melhor de 2009”. A prestigiada Mille-Plateaux ofereceu-se para o reeditar. Nos últimos quatro anos, Ametsub tem alinhado nos cartazes de diversos festivais em todo o mundo, ao lado de nomes como Plaid, Cornelius, Fennesz, Atom™, Vladislav Delay, Moritz Von Oswald, Alva Noto ou Tujiko Noriko.

Dessas muitas viagens resultou, no ano passado, o disco “All is Silence”, gravado em Tóquio, Reiquiavique, Grimsey, Madrid e Gijon.

Fazendo maior uso de “field recordings”, mais ligado à terra, ao chão, “All is Silence” continua, como “Nothings of the North”, a condensar e interpretar vibrações telúricas que Ametsub vai desprendendo na forma de fotogramas oníricos. Na intersecção dos elementos orgânicos e electrónicos, a música ganha sustento, enquanto pairam as imagens sugeridas, ora rentes ao solo, murmurantes, ora altas na imaginação das nuvens. Ainda a melancolia, ainda (e cada vez mais) jazz, experimentações e devaneios electrónicos, o piano, as melodias envolventes e desatadas, o som com mais dimensão, perspectiva e horizonte – mais espaço, portanto, para nos perdermos.

“No man is an island entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main”, diz o poema de John Donne, explicando-nos que, neste mundo, não andamos sozinhos. Nem quando andamos desnorteados na natureza, abstraídos e meditabundos, como se estivéssemos no mundo, mas fora dele.

Publicado no Hoje Macau no dia 26 de Abril de 2013 

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