Há nomes felizes. Aspidistrafly, por exemplo,
um jogo de palavras retiradas do título de um dos livros de George Orwell, o
romance “Keep the Aspidistra Flying”, publicado pela primeira vez em 1936. O
autor britânico haveria de notabilizar-se por outras obras e por imaginar
mundos futuros perdidos para sempre em distopias irreversíveis. Mas, talvez o
escritor de “1984” tivesse gostado de saber que, em 2002, um jovem casal
singapurense inventou uma palavra de inspiração orwelliana, não para descrever
um novo estádio da degenerescência humana ao serviço de um totalitarismo de uma
qualquer espécie, mas sim, na verdade, para celebrar precisamente um género
supremo de humanidade, a música, que não soçobrou ao “triunfo dos porcos”.
April Lee e Ricks Ang são os nomes por detrás
de Apidistrafly. Contam três discos de originais desde 2004, um conjunto que
começou com o EP “The Ghost of Things”, a que se seguiu o primeiro longa
duração, “I Hold a Wish For You”, em 2008, e, finalmente, o mais recente “A
Little Fable”, disco que viu a luz do dia no final do ano passado. Todos os
discos de Aspidistrafly têm o selo da editora singapurense Kitchen, fundada
pela dupla de músicos. Pelo meio, os Aspidistrafly participaram, com originais
e remisturas, numa mão cheia de compilações, e colaboraram em discos de
artistas como os japoneses Akira Kosemura e Haruka Nakamura.
A fusão de “ambient”, “folk”, harmonias e
vocalizações bucólicas e sussurradas, tudo entrelaçado numa envolvente e quente
nebulosa sustentada a “drones”, detritos electrónicos e sons quotidianos, deu
notoriedade aos Aspidistrafly a partir do primeiro disco “a sério”, “I Hold a
Wish For You”, levando-os a incursões para lá dos limites de Singapura. Uma
primeira digressão, em 2009, rodou os Aspidistrafly por sete cidades asiáticas,
incluindo Banguecoque, Tóquio e Macau.
“I Hold a Wish For You” é a extensão natural
do primeiro EP, um trabalho de fôlego profundo já com os Aspidistrafly em modo
“sensurround” e a tirarem partido dos truques de produção que dão espessura e
matéria a uma sonoridade que preserva, todavia, a volatilidade etérea dos
corpos celestes. É nestas dimensões que os Aspidistrafly se vão aproximando dos
formatos tradicionais da canção, mas sem nunca descaracterizarem a música que
permanece em estado gasoso, desprendendo vapores ambientais, fantasmas
translúcidos, de pessoas e de lugares, de imagens, instantes fixos, outros em
movimento perpétuo.
O percurso rumo à purificação do som e ao
aprofundamento da intenção de construir canções tendo por base a frágil
filigrana “ambient folk” é prosseguido em “A Little Fable”, um disco marcado
pelo carácter orgânico das composições que agora são enriquecidas com novas
texturas e a ajuda de colaboradores como Seigen Tokuzawa, Haruka Nakamura,
Junya Yanagidaira (ironomi), Akira Kosemura, Janis Crunch, entre outros.
“A Little Fable” abre com um violoncelo em
surdina a dar o mote para o resto do disco que oscila entre as experiências com
a métrica das canções e o “ambient”, que continua a ser o território de
excelência dos Aspidistrafly.
“Sea of Glass”, por exemplo, poderia ser
facilmente confundida com um trabalho de Marsen Jules e não ficava nada mal num
dos volumes de Pop Ambient, com os seus “prolongados arpeggio de ruidosos
‘loops’ de guitarras que flutuam, reverberando quase como uma percussão
narcótica sobre tumultuosos oceanos”, lê-se na apresentação do disco feita pela
editora.
Depois de passagens por mares agitados, depois
de pequenas fábulas que nos transportam para lugares distintamente surreais, a
cortina cai ao som de “Twinkling Fall”, uma adaptação de “Twinkle, Twinkle,
Little Star”, a popular canção de embalar. “Twinkle, twinkle, little star, how I wonder what you are. Up above the
world so high, like a diamond in the sky.” Hora de sonhar.
“A Little Fable”
Kitchen.Label, 2011
Aspidistrafly
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 25 de Março de 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário