sábado, 8 de agosto de 2015

Aspidistrafly – No tempo das fábulas

 

Há nomes felizes. Aspidistrafly, por exemplo, um jogo de palavras retiradas do título de um dos livros de George Orwell, o romance “Keep the Aspidistra Flying”, publicado pela primeira vez em 1936. O autor britânico haveria de notabilizar-se por outras obras e por imaginar mundos futuros perdidos para sempre em distopias irreversíveis. Mas, talvez o escritor de “1984” tivesse gostado de saber que, em 2002, um jovem casal singapurense inventou uma palavra de inspiração orwelliana, não para descrever um novo estádio da degenerescência humana ao serviço de um totalitarismo de uma qualquer espécie, mas sim, na verdade, para celebrar precisamente um género supremo de humanidade, a música, que não soçobrou ao “triunfo dos porcos”.

April Lee e Ricks Ang são os nomes por detrás de Apidistrafly. Contam três discos de originais desde 2004, um conjunto que começou com o EP “The Ghost of Things”, a que se seguiu o primeiro longa duração, “I Hold a Wish For You”, em 2008, e, finalmente, o mais recente “A Little Fable”, disco que viu a luz do dia no final do ano passado. Todos os discos de Aspidistrafly têm o selo da editora singapurense Kitchen, fundada pela dupla de músicos. Pelo meio, os Aspidistrafly participaram, com originais e remisturas, numa mão cheia de compilações, e colaboraram em discos de artistas como os japoneses Akira Kosemura e Haruka Nakamura.

A fusão de “ambient”, “folk”, harmonias e vocalizações bucólicas e sussurradas, tudo entrelaçado numa envolvente e quente nebulosa sustentada a “drones”, detritos electrónicos e sons quotidianos, deu notoriedade aos Aspidistrafly a partir do primeiro disco “a sério”, “I Hold a Wish For You”, levando-os a incursões para lá dos limites de Singapura. Uma primeira digressão, em 2009, rodou os Aspidistrafly por sete cidades asiáticas, incluindo Banguecoque, Tóquio e Macau.

“I Hold a Wish For You” é a extensão natural do primeiro EP, um trabalho de fôlego profundo já com os Aspidistrafly em modo “sensurround” e a tirarem partido dos truques de produção que dão espessura e matéria a uma sonoridade que preserva, todavia, a volatilidade etérea dos corpos celestes. É nestas dimensões que os Aspidistrafly se vão aproximando dos formatos tradicionais da canção, mas sem nunca descaracterizarem a música que permanece em estado gasoso, desprendendo vapores ambientais, fantasmas translúcidos, de pessoas e de lugares, de imagens, instantes fixos, outros em movimento perpétuo.

O percurso rumo à purificação do som e ao aprofundamento da intenção de construir canções tendo por base a frágil filigrana “ambient folk” é prosseguido em “A Little Fable”, um disco marcado pelo carácter orgânico das composições que agora são enriquecidas com novas texturas e a ajuda de colaboradores como Seigen Tokuzawa, Haruka Nakamura, Junya Yanagidaira (ironomi), Akira Kosemura, Janis Crunch, entre outros.

“A Little Fable” abre com um violoncelo em surdina a dar o mote para o resto do disco que oscila entre as experiências com a métrica das canções e o “ambient”, que continua a ser o território de excelência dos Aspidistrafly.

“Sea of Glass”, por exemplo, poderia ser facilmente confundida com um trabalho de Marsen Jules e não ficava nada mal num dos volumes de Pop Ambient, com os seus “prolongados arpeggio de ruidosos ‘loops’ de guitarras que flutuam, reverberando quase como uma percussão narcótica sobre tumultuosos oceanos”, lê-se na apresentação do disco feita pela editora.

Depois de passagens por mares agitados, depois de pequenas fábulas que nos transportam para lugares distintamente surreais, a cortina cai ao som de “Twinkling Fall”, uma adaptação de “Twinkle, Twinkle, Little Star”, a popular canção de embalar. “Twinkle, twinkle, little star, how I wonder what you are. Up above the world so high, like a diamond in the sky.” Hora de sonhar.

“A Little Fable”
Kitchen.Label, 2011

Aspidistrafly

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 25 de Março de 2012

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