domingo, 9 de agosto de 2015

Bichos

Em menos de um ano, a Assembleia Legislativa rejeitou dois projectos de lei sobre protecção dos animais, ambos apresentados por iniciativa do deputado José Pereira Coutinho. Da primeira vez, em Abril do ano passado, houve quem tivesse alegado a carga de trabalhos e a falta de tempo até à realização de eleições, em Setembro, para justificar o voto contra. Outra “argumentação” (chamemos-lhe assim, “for the sake of conversation”), chamava a atenção para o facto de o Governo estar a preparar semelhante legislação, daí entendendo-se que não havia necessidade de os deputados se incomodarem.

Acredita-se que um diploma sobre “a posse e o bem-estar dos animais” esteja em “processo legislativo” desde 2005. Houve quem tivesse afirmado, ainda no ano passado, que tal documento estava pronto e que daria entrada na Assembleia até ao final de 2013. Não deu. Mesmo assim, esta semana, quando chamados uma vez mais a pronunciarem-se sobre os direitos dos animais, os deputados voltaram a temer que a aprovação do projecto de Coutinho (agora com Leong Veng Chai) perturbasse o tal processo legislativo que dura há quase nove anos e que, pelos vistos, é impassível.

Que a maioria dos deputados não queira oferecer de bandeja uma vitória a Coutinho parece-me normal – no seu calculismo primário, essa atitude quase leva a acreditar que naquele hemiciclo até se fazem jogadas políticas (um pobre contenta-se com pouco). Que se invoque a iniciativa do Governo no mesmo sentido para anular a actividade de um deputado também me parece ter cabimento – afinal, estamos a falar da Assembleia Legislativa de Macau, cujo presidente reconheceu, recentemente, ser um órgão composto por uma maioria de deputados sem conhecimentos jurídicos.

A observação de Ho Iat Seng, consta, não escandalizou ninguém. Quando muito, o presidente pode ser acusado de benevolência para com os seus pares ao ter pecado por escassez na crítica. Pelo menos, assim sugere uma avaliação ao que alguns deputados (entre eles, dos mais votados) disseram na sessão plenária da última segunda-feira.

O inefável Mak Soi Kun, por exemplo, terá lido o art. 4º do projecto de lei, onde está que “(...) considera-se ‘animal’ qualquer animal vertebrado não-humano senciente, ou seja, qualquer animal que possua uma estrutura neurofisiológica associada a uma vida mental activa, que lhe permita ter sensibilidade física, psicológica e emocional relativamente a diferentes estímulos, como também lhe permita ter consciência, a um nível mais ou menos profundo, do que lhe acontece, tendo a capacidade subjectiva de experienciar a dor e o sofrimento, tanto física quanto psicológica e emocionalmente”, e, mesmo assim, confessou: “Não consigo perceber bem o que se entende por animais. São cães e gatos ou também animais selvagens?”, aludindo, pelo meio, à possibilidade de os micróbios também serem incluídos e a uma dúvida – “com esta lei, poderiam os animais fazer amor na rua?”

Já Song Pek Kei, que ostenta uma licenciatura em Direito, mostrou-se atarantada por não saber o que responder às criancinhas que perguntam aos pais o que são os animais, se não são uma “coisa”, coisa que os animais são nesta terra e que o projecto de lei chumbado pretendia alterar.

Igualmente mirabolante, igual a si próprio, Zheng Anting criticou o facto de a proposta apresentada não proteger os donos dos animais contra eventuais ofensas. É que, observou este deputado, “os cães não sabem conversar e têm de ser fechados num sítio, porque podem morder as pessoas”.

No “debate” (chamemos-lhe assim), Mak Soi Kun lembrou ainda Coutinho que, em vez destas questões dos animais, deveria ocupar-se em produzir legislação favorável à protecção das pessoas. Comovente.

Verdadeiramente triste, todavia, é que Macau continue a ser uma terra onde a lei não reconhece nem protege “animais”. Uma selva.


Publicado no jornal Hoje Macau em Fevereiro de 2014 

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