domingo, 9 de agosto de 2015

O acontecimento do silêncio

“(...)

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos
– Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

(...)

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.”

“Prefácio”, “A Colher na Boca”, Herberto Helder, 1961

É dos “arquitectos” e das “casas” de Herberto Helder, poeta que “nunca escreveu sobre o caminho marítimo para a Índia”, como observou o crítico Pedro Mexia, que me lembro no regresso de Goa.

Não me ocorre exaltar os feitos (já desfeitos?) de intrépidos exploradores. É nos arquitectos que penso, nos que chegaram e partiram talvez descuidados ou talvez indiferentes à ordem duradoura do mundo e do tempo, e nos que ficaram. Nos que nunca saíram. Em Goa, eles resistem.

Não são arquitectos de profissão, mas praticam esse ofício de “arquitectar”, de planear, construir e criar. As casas, as cidades, as vidas, são como rumores – passam. Estas passam nesse enigmático tráfego que foi Portugal e os portugueses à descoberta de um mundo que sempre existiu e existiria em todos os gerúndios e modos possíveis.

Em Goa, todavia, houve um tempo que parou, mas também pode ser que talvez nunca tenha corrido. Terá andado sempre com vagar, este com que agora envelhece como um retrato emoldurado numa parede. Como uma memória que nunca deixou de contar os minutos, as horas e os dias.

Entra-se nas casas “cujas paredes, de um amarelo prodigioso, dir-se-iam perpetuamente iluminadas pelo furor do crepúsculo”, na justa descrição de José Eduardo Agualusa, e nelas reconhecemos os seus habitantes e o seu “orgulho melancólico de quem tudo teve, e tudo viu ruir e desaparecer”.

Nesses casarões antigos exibem-se objectos que talvez sejam relíquias melhor guardadas num museu (talvez não), cartas, fotografias, porcelanas, móveis, moedas e até poemas escritos por um pai para o filho (“Era um homem/Que tinha um burrico/Morava no campo/Chamava-se Chico”).

Tudo remete para tempos que já foram. Tempos em que os salões se abriam e vibravam com a música dos pianos europeus. Tempos dos jantares faustosos e demorados. Tempos em que havia ouro para esconder. Tempos que os últimos descendentes da aristocracia católica (dos “reinois”, na terminologia colonial) já não podem viver, só reviver.

“Saudades”, lê-se em azulejos à entrada de uma casa na Ilha de Divar, a que os portugueses chamavam Piedade, só acessível de barco. Sempre foi cercada pelo rio Mandovi e é dessa maneira que os seus (poucos) habitantes a querem, opondo-se a que se construa uma ponte desde “Old Goa”.
No alto de uma colina fica a igreja da Nossa Senhora da Compaixão, ao lado do cemitério católico construído onde destruíram um templo hindu (outro foi entretanto erigido uns passos à frente da igreja). Pelo sopé do monte, as “portuguese villas” e, por todo o lado, cruzes e terrenos em que, devido a crenças mais ancestrais, não é permitido cultivar.

Ao deixar a ilha, atravessando o rio no “ferry” descansado, somos surpreendidos pela visão da cúpula barroca da igreja de São Caetano, em “Old Goa”, elevando-se, caiada, sobre as palmeiras que parecem sustê-la sem qualquer esforço, qual altar tropical. Ao lado, esconde-se a igreja de São Francisco de Assis e, mais à frente, haveremos de encontrar a Basílica do Bom Jesus, do outro lado da estrada que atravessa esta Goa Velha e de tolhida pacatez, outrora uma buliçosa capital que viria a ser abandonada e deserta depois de surtos de malária e de cólera.

Aqui, muito mais do que nos pequenos bairros de traça influenciada pelos antigos visitantes onde se foi aprendendo a viver do passado e os velhos casarios são recuperados como pensões e restaurantes, mostra-se a face mais evidente do afastamento, da fuga e também do desamparo, apesar das monumentais igrejas de portas abertas.

Ao contrário de Macau, onde tudo (quase tudo) se substitui ou justapõe, e em que a cidade é construída em areias movediças, um chão que parece estar sempre a fugir debaixo dos nossos pés, em Goa apenas o tempo toma conta do tempo, como uma planta trepadeira que pacientemente cobre uma fachada e a seguir outra e a seguir outra. É como se tudo se abandonasse, menos o silêncio. E esta natureza de “ir embora”, de partir, parece-me, é a epopeia maior: não a que canta mais alto, mas a que cala mais fundo.

Publicado no jornal Hoje Macau em Fevereiro de 2014 

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