sábado, 8 de agosto de 2015

Carsick Cars: Estado rock


“Ritual de lo habitual”, o título do segundo álbum dos Janes’s Addiction, assenta que nem uma luva para descrever o que se passou em Pequim nos últimos dias, a propósito do 18º Congresso do Partido Comunista Chinês. De cinco em cinco anos, o ritual repete-se. Desta vez, a reunião magna coincidiu com uma transição de liderança, mas nem isso, nem as lutas internas entre as várias facções do partido, os segredos ou os silêncios, nada perturbou as poses e os discursos e o natural andamento ditando que, depois, são outros cinco anos, até que tudo se repita. E assim sucessivamente.

Tudo decorreu dentro da normalidade, sem dissensões ou sobressaltos (pelo menos públicos e oficiais), um pouco como o rock chinês, que, nos últimos 20 anos, passou de rebelde e contestatário (Cui Jian, o “pai” dos rockers chineses, esteve banido de actuar em grandes salas durante 11 anos por causa de certas ousadias, tais como “cantar” sobre certas coisas melindrosas) a apolítico e “livre” (quase todas as bandas e músicos no activo, hoje, desde que evitem referências a determinados temas “sensíveis”). Se não os podes vencer, junta-te a eles (ou, pelo menos, não os chateies).

Mas mesmo que as máximas da resignação prevaleçam, também se pode dizer que “quem ri por último, ri melhor”. Ou, simplesmente, que “rir é o melhor remédio”.

Tem a sua piada, sem dúvida, por exemplo, que a música mais conhecida da mais conhecida banda rock chinesa tenha por título “Zhongnanhai”, o nome do palácio de Pequim que serve de sede do Partido Comunista e do Governo Central, e que designa, genericamente, a liderança chinesa, mas que também é o nome de uma popular marca de cigarros que, consta, Mao fumava. Juram a pés juntos os Carsick Cars (a tal banda que é a mais conhecida da “indiechina”) que a canção chamada “Zhongnanhai” refere-se à marca de tabaco. Não há por que duvidar. E também não há por que deixar de esboçar um sorriso.

Os Carsick Cars formaram-se em Pequim, em 2005. Shou Wang (voz e guitarra), Li Qing (bateria) e Li Weisi (baixo), compunham o trio. O primeiro disco surgiu em 2007. Produzido pelo líder da banda P.K. 14, Yang Haisong, o álbum deixava identificar referências que iam do entorpecimento sónico dos Velvet Underground às melopeias repetitivas tecidas pela guitarra de Glenn Branca, passando, obviamente, pela maior influência de todas, os Sonic Youth e as suas canções rock pouco ortodoxas feitas de guitarras dissonantes. A banda de Thurston Moore e Kim Gordon, aliás, haveria de apadrinhar os Carsick Cars e levá-los numa digressão europeia, depois de os terem convidado para fazer a primeira parte de um concerto dos Sonic Youth na China, que haveria de ser cancelado à última da hora.

A benção dos norte-americanos não aconteceu por acaso. Desde que apareceram, os Carsick Cars ocuparam decididos o espaço inventado pelos Sonic Youth, algures entre a tradição rock e o vanguardismo “arty”, com a mesma afeição, entrega e desprendimento adolescentes. Tudo no sítio certo.

Ainda em 2007, os três elementos da banda começaram a dispersar-se por outros projectos (igualmente interessantes): Shou Wang gravou o primeiro disco da dupla White, e Li Qing e Li Weisi fundaram os Snapline.

Em 2009, os Carsick Cars editaram “You Can Listen, You Can Talk”, até à data o último trabalho de originais da banda, que tem, desde então, andado entretida em concertos na Europa e nos Estados Unidos.

2010 foi o ano da separação, mas não do fim dos Carsick Cars. Li Weisi e Li Qing abandonaram o grupo, sendo substituídos, respectivamente, por Ben Ben (da banda Boyz and Girl) e He Fan (dos Birdstriking), que, entretanto, deu o lugar a um novo baterista, Houzi (dos Chaos).

Várias mexidas depois, no entanto, e como nota a editora Maybe Mars, “a formação tumultuosa mantém os Carsick Cars frescos e como uma das mais amadas bandas chinesas”.

Na verdade, não é difícil acreditar que, tal como no Partido Comunista Chinês, também nos Carsick Cars, muito provavelmente a mais respeitada instituição rock da China, é preciso mudar para que tudo fique na mesma. E pode-se sempre perguntar, como eles o fazem: “Who fucking smoke my Zhongnanhai?”


Publicado no jornal Hoje Macau no dia 16 de Novembro de 2012 

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