Podem durar segundos e parecer uma eternidade.
Existem desde sempre, mas raramente nos lembramos deles. Uns assustam, outros
encantam. A eles se dedicaram longamente poetas, pintores, filósofos e
cientistas, mas ninguém os desvendou em definitivo. Tanto quanto se sabe, são
como um filme que se desenrola na nossa mente, uma sucessão de imagens e
emoções, acções a que assistimos como se fossemos espectadores de nós próprios,
da nossa transformação e do que nos rodeia, no espaço e no tempo. Da sala
escura do sono saímos sempre, quase sempre, com a sensação de suspenso que um
dia Chuang Tzu imortalizou na história do homem que não sabia se era
verdadeiramente um homem que um dia sonhou que era uma borboleta, ou se era uma
borboleta que um dia sonhou que era um homem. O mistério e o fascínio perduram.
Também a história da música popular é feita de
sonhos. Ou, melhor dizendo, também a música popular é feita de histórias de
sonhos. “I close my eyes / Then I drift away / Into the magic night / I softly
sway / Oh smile and pray / Like dreamers do / Then I fall asleep / To dream my
dreams of you”, cantava Roy Orbison. Desde então, o espaço de evasão alargou-se
até ao infinito. Nessa galáxia entretanto povoada da “dream pop” encontramos
eternos sonhadores que, hoje como ontem, continuam a deixar-nos algures na
distância que separa a realidade do devaneio.
O último trabalho da japonesa Cuushe (Mayuko
Hitotsuyanagi), o triplo EP “Girl / You Know That I am Here / But the Dream” é
feito dessa matéria onírica.
Divididos em três partes, os onze temas – três
originais e os restantes remisturas, algumas de canções do primeiro álbum de
Cuushe, “Red Rocket Telepathy” –, podem ser ouvidos como capítulos de um mesmo
livro, tal a série de coincidências que os ligam entre si, apesar de
trabalhados por diversas e distintas mãos.
Do lado dos temas originais, o primeiro, “Do
You Know The Way To Sleep”, apresenta-nos uma cantilena cheia de langor que
repete a frase do título até a candura se transformar em desesperada esperança.
“I Dreamt About Silence” é uma balada em versão “slow motion disco”,
devidamente leve e vaporosa, e, no terceiro EP, “9125 Days Of Sleep Waves”
ressuscita parcialmente a estética 4AD que nos deu os Cocteau Twins e as
guitarras aeroespaciais de Robin Guthrie.
As remisturas sucedem-se em modo “sonho dentro
de sonho”, a cargo de respeitáveis nomes como Federico Durand, Teen Daze ou
Julia Holter. A norte-americana é responsável pelas notas mais dissonantes
(relativamente ao conjunto). Na versão de Holter, “Swimming In The Room”, do
primeiro disco de Cuushe, é um exercício de colagem feito de silêncios
entremeados com sons ambientais, diálogos fortuitos e ruídos de arquivo, com a
voz pueril de Mayuko Hitotsuyanagi a unir os fragmentos, solitária. Federico
Durand expande “9125 Days Of Sleep Waves” pelos territórios de Brian Eno, numa
viagem de dez minutos ao sabor da manipulação de microrganismos digitais que
escutamos como poeiras cósmicas que bailam no ar antes de assentarem connosco
num sono profundo, só incomodado quando Teen Daze fizer soar a maquinaria
rítmica em “I Dreamt About Silence”, o trecho ideal do disco para os momentos
“sonhar acordado”.
Em Maio deste ano,
a Live Music Association foi o palco de uma noite dedicada à editora japonesa
Flau, a casa de Cuushe, que aqui veio na companhia de Aus e Cokiyu. Sozinha em
palco, de semblante tímido, escondida atrás do longo cabelo, Cuushe só não
parecia completamente perdida porque a sua música, ainda que mais próxima dos
“sonhos desfeitos” do que de uns quaisquer “sonhos cor de rosa”, tem o poder da
sugestão. Basta fechar os olhos e abrir os ouvidos.
“Girl / You Know That I am Here / But the
Dream”
Flau,
2012
Cuushe
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 23 de Novembro de 2012
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