sábado, 8 de agosto de 2015

Silêncio, que acordei agora


Podem durar segundos e parecer uma eternidade. Existem desde sempre, mas raramente nos lembramos deles. Uns assustam, outros encantam. A eles se dedicaram longamente poetas, pintores, filósofos e cientistas, mas ninguém os desvendou em definitivo. Tanto quanto se sabe, são como um filme que se desenrola na nossa mente, uma sucessão de imagens e emoções, acções a que assistimos como se fossemos espectadores de nós próprios, da nossa transformação e do que nos rodeia, no espaço e no tempo. Da sala escura do sono saímos sempre, quase sempre, com a sensação de suspenso que um dia Chuang Tzu imortalizou na história do homem que não sabia se era verdadeiramente um homem que um dia sonhou que era uma borboleta, ou se era uma borboleta que um dia sonhou que era um homem. O mistério e o fascínio perduram.

Também a história da música popular é feita de sonhos. Ou, melhor dizendo, também a música popular é feita de histórias de sonhos. “I close my eyes / Then I drift away / Into the magic night / I softly sway / Oh smile and pray / Like dreamers do / Then I fall asleep / To dream my dreams of you”, cantava Roy Orbison. Desde então, o espaço de evasão alargou-se até ao infinito. Nessa galáxia entretanto povoada da “dream pop” encontramos eternos sonhadores que, hoje como ontem, continuam a deixar-nos algures na distância que separa a realidade do devaneio.

O último trabalho da japonesa Cuushe (Mayuko Hitotsuyanagi), o triplo EP “Girl / You Know That I am Here / But the Dream” é feito dessa matéria onírica.

Divididos em três partes, os onze temas – três originais e os restantes remisturas, algumas de canções do primeiro álbum de Cuushe, “Red Rocket Telepathy” –, podem ser ouvidos como capítulos de um mesmo livro, tal a série de coincidências que os ligam entre si, apesar de trabalhados por diversas e distintas mãos.

Do lado dos temas originais, o primeiro, “Do You Know The Way To Sleep”, apresenta-nos uma cantilena cheia de langor que repete a frase do título até a candura se transformar em desesperada esperança. “I Dreamt About Silence” é uma balada em versão “slow motion disco”, devidamente leve e vaporosa, e, no terceiro EP, “9125 Days Of Sleep Waves” ressuscita parcialmente a estética 4AD que nos deu os Cocteau Twins e as guitarras aeroespaciais de Robin Guthrie.

As remisturas sucedem-se em modo “sonho dentro de sonho”, a cargo de respeitáveis nomes como Federico Durand, Teen Daze ou Julia Holter. A norte-americana é responsável pelas notas mais dissonantes (relativamente ao conjunto). Na versão de Holter, “Swimming In The Room”, do primeiro disco de Cuushe, é um exercício de colagem feito de silêncios entremeados com sons ambientais, diálogos fortuitos e ruídos de arquivo, com a voz pueril de Mayuko Hitotsuyanagi a unir os fragmentos, solitária. Federico Durand expande “9125 Days Of Sleep Waves” pelos territórios de Brian Eno, numa viagem de dez minutos ao sabor da manipulação de microrganismos digitais que escutamos como poeiras cósmicas que bailam no ar antes de assentarem connosco num sono profundo, só incomodado quando Teen Daze fizer soar a maquinaria rítmica em “I Dreamt About Silence”, o trecho ideal do disco para os momentos “sonhar acordado”.

Em Maio deste ano, a Live Music Association foi o palco de uma noite dedicada à editora japonesa Flau, a casa de Cuushe, que aqui veio na companhia de Aus e Cokiyu. Sozinha em palco, de semblante tímido, escondida atrás do longo cabelo, Cuushe só não parecia completamente perdida porque a sua música, ainda que mais próxima dos “sonhos desfeitos” do que de uns quaisquer “sonhos cor de rosa”, tem o poder da sugestão. Basta fechar os olhos e abrir os ouvidos.

 “Girl / You Know That I am Here / But the Dream”
Flau, 2012
Cuushe

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 23 de Novembro de 2012

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