De paradoxo em paradoxo, eis-nos num “mundo em
que há cada vez mais e mais informação, e cada vez menos e menos sentido”,
diria Baudrillard.
Indiferente às autofagias desta nossa
modernidade que, apesar de tudo, sempre vai mostrando que menos é mais (e o seu
contrário), há uma incansável massa informe que continua a adicionar nadas a
uma imensa montanha de vazio, e a anunciar com gravidade a generosa dádiva.
Nesta encenação de importâncias, quem se
abstém do dízimo considera-se, contra qualquer apelo, um proscrito, um pária
condenado a cirandar sem propósito pelos esconsos da “era digital” e sem media
onde cair morto. Felizmente, outros há que continuam indiferentes à febre. E,
como é sabido, “silence speaks volumes”.
Em 2010, do nada apareceu uma cassete áudio
(sim, aquele objecto de plástico no interior do qual se desenrola uma banda
magnética de gravação de som) com uma capa cujo grafismo (a imagem de uma
mulher sozinha numa praia, que parecia retirada de um qualquer poster esquecido
num sótão) acentuava a sensação de falta de sincronia entre o que vemos e o
tempo em que estamos.
Tratava-se de “Jet Set Siempre No. 1”, de
Clive Tanaka y Su Orquesta. Pelos dois lados da cassete azul dividiam-se
equitativamente oito temas – quatro “For Dance” e outros quatro “For Romance”
–, quarenta minutos num invólucro de mistério, sem referências quanto à origem
do artista ou da música, adensando uma já de si espessa aura exótica e
singular.
Nas várias publicações onde o correio deixou a
enigmática encomenda, os que conseguiram desencantar “walkmans” em condições
partilharam maravilhados relatos de “descoberta”, crónicas de uma música que
compensava a nostalgia com “good vibes”, que ensaiava passos retro-futuristas
no limiar do “kitsch”, ritmos disco, pausas baleares, “vocoders”, letras
simples de amor, tudo embebido num “lo-fi” umas vezes mais granulado, outras
mais cristalino.
Um ano depois da cassete, haveria de surgir a
edição em vinil de “Jet Set Siempre No. 1”. Logo de seguida, chegou a mais
democrática versão digital. No entanto, continuou a não haver a confirmação de
quem é Clive Tanaka ou se “Su Orquesta” é apenas um nome.
Pela página electrónica de Clive Tanaka (ou
será “Clive Tanaka”?) somos levados a pensar que se trata de um japonês, mas
neste universo nem tudo o que parece é.
Um rumor que entretanto surgiu e ao qual tem
sido dada alguma consistência conta-nos que Clive Tanaka foi um “hikimori”
(termo que designa os adolescentes japoneses que nunca abandonam os quartos, aí
chegando a ficar, por vezes, largos anos), residente em Hokkaido, e que agora
se dedica a gerir um conglomerado industrial pomposamente chamado Tanaka Heavy
Industries, LTD. Outros rumores, menos elaborados, definem Clive Tanaka como a
ficção de um qualquer produtor. De Chicago, talvez. Mas... Isso interessa?
Tanaka parece dizer “não”.
Depois do disco de estreia, os únicos sinais
de vida do produtor e da “Su Orquesta” foram uma colaboração com o projecto
Groundislava, de Los Angeles, no tema “TV Dream”, e uma ou outra “mix tape” de
irrepreensível bom gosto (repletas de pérolas que, com muita probabilidade,
saíram de uma qualquer colecção de discos com residência japonesa). E mais
Clive Tanaka não diz nem quer que se saiba.
“O fogo parece o destino final das bibliotecas”,
escreveu Enrique Vila-Matas, o catalão que nos deu essa encantadora antologia
da “literatura do Não” chamada “Bartleby & Companhia”, feita dos que
renunciaram à escrita para melhor a poderem afirmar: “Beckett diria que até as
palavras nos abandonam e que com isso fica tudo dito”. Et voilà. É apenas
elementar que a música viva do silêncio.
“Jet Set
Siempre 1º”
Tall Corn
Music, 2011
Clive
Tanaka & Su Orquesta
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 7 de Dezembro de 2012
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