sábado, 8 de agosto de 2015

Cassete contra os piratas



De paradoxo em paradoxo, eis-nos num “mundo em que há cada vez mais e mais informação, e cada vez menos e menos sentido”, diria Baudrillard.

Indiferente às autofagias desta nossa modernidade que, apesar de tudo, sempre vai mostrando que menos é mais (e o seu contrário), há uma incansável massa informe que continua a adicionar nadas a uma imensa montanha de vazio, e a anunciar com gravidade a generosa dádiva.

Nesta encenação de importâncias, quem se abstém do dízimo considera-se, contra qualquer apelo, um proscrito, um pária condenado a cirandar sem propósito pelos esconsos da “era digital” e sem media onde cair morto. Felizmente, outros há que continuam indiferentes à febre. E, como é sabido, “silence speaks volumes”.

Em 2010, do nada apareceu uma cassete áudio (sim, aquele objecto de plástico no interior do qual se desenrola uma banda magnética de gravação de som) com uma capa cujo grafismo (a imagem de uma mulher sozinha numa praia, que parecia retirada de um qualquer poster esquecido num sótão) acentuava a sensação de falta de sincronia entre o que vemos e o tempo em que estamos.

Tratava-se de “Jet Set Siempre No. 1”, de Clive Tanaka y Su Orquesta. Pelos dois lados da cassete azul dividiam-se equitativamente oito temas – quatro “For Dance” e outros quatro “For Romance” –, quarenta minutos num invólucro de mistério, sem referências quanto à origem do artista ou da música, adensando uma já de si espessa aura exótica e singular.

Nas várias publicações onde o correio deixou a enigmática encomenda, os que conseguiram desencantar “walkmans” em condições partilharam maravilhados relatos de “descoberta”, crónicas de uma música que compensava a nostalgia com “good vibes”, que ensaiava passos retro-futuristas no limiar do “kitsch”, ritmos disco, pausas baleares, “vocoders”, letras simples de amor, tudo embebido num “lo-fi” umas vezes mais granulado, outras mais cristalino.

Um ano depois da cassete, haveria de surgir a edição em vinil de “Jet Set Siempre No. 1”. Logo de seguida, chegou a mais democrática versão digital. No entanto, continuou a não haver a confirmação de quem é Clive Tanaka ou se “Su Orquesta” é apenas um nome.

Pela página electrónica de Clive Tanaka (ou será “Clive Tanaka”?) somos levados a pensar que se trata de um japonês, mas neste universo nem tudo o que parece é.

Um rumor que entretanto surgiu e ao qual tem sido dada alguma consistência conta-nos que Clive Tanaka foi um “hikimori” (termo que designa os adolescentes japoneses que nunca abandonam os quartos, aí chegando a ficar, por vezes, largos anos), residente em Hokkaido, e que agora se dedica a gerir um conglomerado industrial pomposamente chamado Tanaka Heavy Industries, LTD. Outros rumores, menos elaborados, definem Clive Tanaka como a ficção de um qualquer produtor. De Chicago, talvez. Mas... Isso interessa? Tanaka parece dizer “não”.

Depois do disco de estreia, os únicos sinais de vida do produtor e da “Su Orquesta” foram uma colaboração com o projecto Groundislava, de Los Angeles, no tema “TV Dream”, e uma ou outra “mix tape” de irrepreensível bom gosto (repletas de pérolas que, com muita probabilidade, saíram de uma qualquer colecção de discos com residência japonesa). E mais Clive Tanaka não diz nem quer que se saiba.

“O fogo parece o destino final das bibliotecas”, escreveu Enrique Vila-Matas, o catalão que nos deu essa encantadora antologia da “literatura do Não” chamada “Bartleby & Companhia”, feita dos que renunciaram à escrita para melhor a poderem afirmar: “Beckett diria que até as palavras nos abandonam e que com isso fica tudo dito”. Et voilà. É apenas elementar que a música viva do silêncio.

“Jet Set Siempre 1º”
Tall Corn Music, 2011
Clive Tanaka & Su Orquesta

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 7 de Dezembro de 2012

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