sábado, 8 de agosto de 2015

China: Underground fértil (II)



“An Anthology of Chinese Experimental Music” vem acompanhada de um ensaio assinado a duas mãos por Zbigniew Karkowski (músico e produtor polaco com forte ligação ao Japão) e Yan Jun (entre muitos outros atributos, músico e proprietário da editora Sub Jam, de Pequim).

Além de servir como leitura complementar às cerca de 5 horas de música, o texto é essencial para uma compreensão da origem e do desenvolvimento da actividade experimental dos músicos chineses contemporâneos.

Todavia, o ensaio intitulado “The Sound of the Underground, Experimental and Non-Academic Musics in China” não se limita a lançar luz apenas sobre o estrito campo da música experimental. Ao recuperarem as origens deste género na China, os dois autores traçam a árvore genealógica de praticamente todas as formas de expressão independentes e alternativas nascidas na República Popular.

Ao contrário da “tradição Ocidental”, segundo a qual a produção artística tem um olho posto no futuro e outro fixo na História, na China, nestas lides das expressões culturais alternativas não havia memória de um passado, apenas possibilidades de futuro.

Foi só a partir de meados da década de 1980 que a explosão criativa da juventude começou a ganhar expressão na forma da música Rock, um movimento sem precedentes num país cujas primeiras referências exteriores chegaram pelas portas travessas do capitalismo da então recente “economia de mercado”. Foi através dessas portas que chegaram à China os excedentes das editoras de música ocidentais, sobras que vendidas como plástico para ser reciclado nos países em desenvolvimento.

A maioria destas rodelas de música (vulgos CD) são marcadas com um furo, sinalizando a saída de circulação. Na China, estes CD foram desde logo carinhosamente recebidos com um apelido: “dakou” (literalmente, “fazer um buraco”). Enquanto uns seguiam para reciclagem, muitos “dakou” tiveram por destino as bancas improvisadas dos mercados de rua. Havia de tudo e mais alguma coisa, desde música clássica ao rock, passando pelo jazz, dos clássicos, às novidades. Tendo em conta as restrições governamentais (que ainda existem) quanto à importação de produtos culturais, o mercado negro foi, assim, a primeira e principal fonte de música Ocidental na China, um país literalmente vedado. Até por este facto se percebe o que aconteceu a seguir.

Neste ponto da história, os dois autores salientam o surgimento de elementos como “descontentamento” e “motivação política” nas contra-culturas que nasciam. Muitos foram os músicos chineses que enveredaram por uma tendência extremista, aliada à expressão das frustrações e rebeldias características da juventude: era preciso fazer mais e mais barulho, ser o mais livre e radical possível, desafiar a ordem e a autoridade, formal ou figurada. As fundações da subcultura do experimentalismo e da música abstracta estavam lançadas.

Os primeiros sinais de um movimento organizado chegaram logo no início da década de 90. Dickson Dee, o músico de Hong Kong que serviu de curador de “An Anthology of Chinese Experimental Music”, teve aqui um papel crucial ao introduzir na China muitos dos nomes importantes da cena experimental internacional. Foi ele quem, por exemplo, organizou a digressão chinesa de John Zorn (referência do avant-garde nova-iorquino) e Yamatsuka Eye (dos japoneses Boredoms), em 1995. Curioso notar que, nessa mesma altura, John Zorn haveria de actuar também em Macau, no Teatro Dom Pedro V. Outros tempos.

O “underground” estava a germinar. A autoria da primeira obra de música experimental feita na China é atribuída a Wang Fan, um músico originário de Lazhou que se mudou para Pequim. Zbigniew Karkowski e Yan Jun fazem referência a uma “misteriosa peça de baixa-fidelidade de 40 minutos”. Quando produziu “Dharma’s Crossing”, em 1997, Wang Fan nada sabia das “tradições” da música experimental: auto-didacta, “limitou-se a inventar” e experimentar a sua própria música recorrendo a uma guitarra com umas quantas cordas soltas, latas de refrigerantes, uma televisão e um gravador caseiro. O resto, como costuma dizer-se, é história.

Contudo, seria preciso esperar pelo século XXI para que a verdadeira ressonância das experiências precursoras de Wang Fan se sentisse. Agora, é impossível traçar com precisão a disseminação da influência deste pioneiro. Num mundo com as fronteiras virtualmente esbatidas, os músicos chineses estão irreversivelmente “interligados” - entre si, mas também na vasta rede mundial. E, embora havendo buracos, nesta rede eles são apenas virtuais e têm um efeito benéfico; já muito se andou desde os tempos em que os CD estrangeiros chegavam defeituosos e com furos. (Continua)

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 4 de Março de 2011


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