“An Anthology of Chinese Experimental Music”
vem acompanhada de um ensaio assinado a duas mãos por Zbigniew Karkowski
(músico e produtor polaco com forte ligação ao Japão) e Yan Jun (entre muitos
outros atributos, músico e proprietário da editora Sub Jam, de Pequim).
Além de servir como leitura complementar às
cerca de 5 horas de música, o texto é essencial para uma compreensão da origem
e do desenvolvimento da actividade experimental dos músicos chineses
contemporâneos.
Todavia, o ensaio intitulado “The Sound of the
Underground, Experimental and Non-Academic Musics in China” não se limita a
lançar luz apenas sobre o estrito campo da música experimental. Ao recuperarem
as origens deste género na China, os dois autores traçam a árvore genealógica
de praticamente todas as formas de expressão independentes e alternativas
nascidas na República Popular.
Ao contrário da “tradição Ocidental”, segundo
a qual a produção artística tem um olho posto no futuro e outro fixo na
História, na China, nestas lides das expressões culturais alternativas não
havia memória de um passado, apenas possibilidades de futuro.
Foi só a partir de meados da década de 1980
que a explosão criativa da juventude começou a ganhar expressão na forma da
música Rock, um movimento sem precedentes num país cujas primeiras referências
exteriores chegaram pelas portas travessas do capitalismo da então recente
“economia de mercado”. Foi através dessas portas que chegaram à China os
excedentes das editoras de música ocidentais, sobras que vendidas como plástico
para ser reciclado nos países em desenvolvimento.
A maioria destas rodelas de música (vulgos CD)
são marcadas com um furo, sinalizando a saída de circulação. Na China, estes CD
foram desde logo carinhosamente recebidos com um apelido: “dakou”
(literalmente, “fazer um buraco”). Enquanto uns seguiam para reciclagem, muitos
“dakou” tiveram por destino as bancas improvisadas dos mercados de rua. Havia
de tudo e mais alguma coisa, desde música clássica ao rock, passando pelo jazz,
dos clássicos, às novidades. Tendo em conta as restrições governamentais (que
ainda existem) quanto à importação de produtos culturais, o mercado negro foi,
assim, a primeira e principal fonte de música Ocidental na China, um país
literalmente vedado. Até por este facto se percebe o que aconteceu a seguir.
Neste ponto da história, os dois autores
salientam o surgimento de elementos como “descontentamento” e “motivação
política” nas contra-culturas que nasciam. Muitos foram os músicos chineses que
enveredaram por uma tendência extremista, aliada à expressão das frustrações e
rebeldias características da juventude: era preciso fazer mais e mais barulho,
ser o mais livre e radical possível, desafiar a ordem e a autoridade, formal ou
figurada. As fundações da subcultura do experimentalismo e da música abstracta estavam
lançadas.
Os primeiros sinais de um movimento organizado
chegaram logo no início da década de 90. Dickson Dee, o músico de Hong Kong que
serviu de curador de “An Anthology of Chinese Experimental Music”, teve aqui um
papel crucial ao introduzir na China muitos dos nomes importantes da cena
experimental internacional. Foi ele quem, por exemplo, organizou a digressão
chinesa de John Zorn (referência do avant-garde nova-iorquino) e Yamatsuka Eye
(dos japoneses Boredoms), em 1995. Curioso notar que, nessa mesma altura, John
Zorn haveria de actuar também em Macau, no Teatro Dom Pedro V. Outros tempos.
O “underground” estava a germinar. A autoria
da primeira obra de música experimental feita na China é atribuída a Wang Fan,
um músico originário de Lazhou que se mudou para Pequim. Zbigniew Karkowski e
Yan Jun fazem referência a uma “misteriosa peça de baixa-fidelidade de 40
minutos”. Quando produziu “Dharma’s Crossing”, em 1997, Wang Fan nada sabia das
“tradições” da música experimental: auto-didacta, “limitou-se a inventar” e
experimentar a sua própria música recorrendo a uma guitarra com umas quantas
cordas soltas, latas de refrigerantes, uma televisão e um gravador caseiro. O
resto, como costuma dizer-se, é história.
Contudo, seria preciso esperar pelo século XXI
para que a verdadeira ressonância das experiências precursoras de Wang Fan se
sentisse. Agora, é impossível traçar com precisão a disseminação da influência
deste pioneiro. Num mundo com as fronteiras virtualmente esbatidas, os músicos
chineses estão irreversivelmente “interligados” - entre si, mas também na vasta
rede mundial. E, embora havendo buracos, nesta rede eles são apenas virtuais e
têm um efeito benéfico; já muito se andou desde os tempos em que os CD
estrangeiros chegavam defeituosos e com furos. (Continua)
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 4 de Março de 2011
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