sábado, 8 de agosto de 2015

China: “Underground” fértil (Parte 1)



Metade dos computadores que existem no Mundo acabam na China para serem reciclados. Por ano, milhões de toneladas de “resíduos electrónicos” viajam para a República Popular com o objectivo de servirem o insaciável apetite por matérias primas que alimentem a contínua revolução industrial chinesa.

O lixo é minuciosamente examinado e todos os componentes de metal são separados. Essa tarefa, documentada no impressionante trabalho do fotógrafo canadiano Edward Burtynsky, é a única fonte de rendimento para muitos idosos que, depois de terem vivido a Revolução Comunista, a Revolução Cultural e o “socialismo de características chinesas”, acabam nas suas modestas casas com os desperdícios do capitalismo nas mãos.

É assim o fim das máquinas: destruídas onde foram construídas. Todavia, na “fábrica do Mundo”, para os computadores há mais vida além das linhas de montagem e desmontagem.

“An Anthology of Chinese Experimental Music 1992-2008” (2009) é a grande prova de vida e a primeira panorâmica realmente abrangente da música experimental e electrónica não-académica feita na China e em territórios de grande influência sínica: Hong Kong, Taiwan, Singapura e Malásia.

São mais de cinco horas de música de 48 artistas nesta opulenta edição da editora belga Sub Rosa, que convidou o músico Li Chin Sung (Dickson Dee), de Hong Kong, para fazer o papel de curador. Os temas mais antigos apresentados nesta edição foram produzidos na antiga colónia britânica. Da década de 90 são ainda recuperados trabalhos de artistas taiwaneses, sendo que a música experimental da República Popular, para efeitos desta antologia, entra em cena apenas em 2003, através da colaboração entre Wuwei, de Xangai, e Ulrich Morits, de Berlim. (Nota: a quem estiver interessado em conhecer o período de 1997 a 2002 da música experimental “made in China”, aconselha-se “China: The Sonic Avant-Garde”, compilação lançada em 2003 pela editora californiana Post-Concrete.)

Em comparação com a Europa ou os Estados Unidos, na China, o nascimento da música experimental fora das portas da Academia aconteceu tardiamente. Contudo, pela amostra de “An Anthology of Chinese Experimental Music”, o “underground” chinês é fecundo: são dez as cidades representadas (Pequim, Xangai, Chengdu, Guilin, Hangzhou, Shenzhen, Guangzhou, Fuzhou, Shanxi e Harbin). Esta amplitude mostra que as experiências com o som são hoje abundantes no país, mas as virtudes desta compilação medem-se sobretudo pela qualidade da representação das diversas dimensões da música experimental.

Desde o “ambient” sensorial de Dickson Dee até ao “noise” agressivo e industrial dos Torturing Nurse (Xangai), passando pela desconstrução em modo filigrana electrónica de Me:Mo (Pequim), a aproximação “Techno” ao formato canção de Nara (Pequim), a narração dos fantasmas japoneses e soviéticos de Yan Jun (Pequim), as raízes da música tradicional e o canto-pop na máquina misturadora multimédia de Tats Lau (Hong Kong), ou a grande muralha sónica de D!O!D!O!D! (Li Jianhong + Huangjin, de Hangzhou), a geografia desta música é vasta.

Como porta de entrada no mundo deste universo que desafia convenções, “An Anthology of Chinese Experimental Music” cumpre eficazmente a missão. Não se pense, no entanto, encontrar aqui algo radicalmente moderno e diferente do que é feito noutras paragens. O que existe, se assim se pode dizer, de “verdadeiramente chinês” nesta abordagem à música experimental é a criatividade em estado puro e a sensação de descoberta de um novo mundo por parte destes artistas que durante anos viveram numa realidade arredada de influências exteriores.

O compositor e guru da música experimental John Cage definiu que “uma acção experimental é uma acção cujo resultado ou consequência não podem ser previstos”.

Tendo em conta que, na China, a música experimental vive ainda um período primitivo e sem uma unidade propriamente definida, os músicos chineses estarão numa posição privilegiada para colocarem em prática a formulação de Cage. Quando não há passado, que futuro pode haver? É este o desafio, mas ainda é cedo para uma resposta. (Continua)

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 25 de Fevereiro de 2011


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