Metade dos computadores que existem no Mundo acabam na China para serem reciclados. Por ano, milhões de toneladas de “resíduos electrónicos” viajam para a República Popular com o objectivo de servirem o insaciável apetite por matérias primas que alimentem a contínua revolução industrial chinesa.
O lixo é minuciosamente examinado e todos os
componentes de metal são separados. Essa tarefa, documentada no impressionante
trabalho do fotógrafo canadiano Edward Burtynsky, é a única fonte de rendimento
para muitos idosos que, depois de terem vivido a Revolução Comunista, a
Revolução Cultural e o “socialismo de características chinesas”, acabam nas
suas modestas casas com os desperdícios do capitalismo nas mãos.
É assim o fim das máquinas: destruídas onde
foram construídas. Todavia, na “fábrica do Mundo”, para os computadores há mais
vida além das linhas de montagem e desmontagem.
“An Anthology of Chinese Experimental Music
1992-2008” (2009) é a grande prova de vida e a primeira panorâmica realmente
abrangente da música experimental e electrónica não-académica feita na China e
em territórios de grande influência sínica: Hong Kong, Taiwan, Singapura e
Malásia.
São mais de cinco horas de música de 48
artistas nesta opulenta edição da editora belga Sub Rosa, que convidou o músico
Li Chin Sung (Dickson Dee), de Hong Kong, para fazer o papel de curador. Os
temas mais antigos apresentados nesta edição foram produzidos na antiga colónia
britânica. Da década de 90 são ainda recuperados trabalhos de artistas
taiwaneses, sendo que a música experimental da República Popular, para efeitos
desta antologia, entra em cena apenas em 2003, através da colaboração entre
Wuwei, de Xangai, e Ulrich Morits, de Berlim. (Nota: a quem estiver interessado
em conhecer o período de 1997 a 2002 da música experimental “made in China”,
aconselha-se “China: The Sonic Avant-Garde”, compilação lançada em 2003 pela
editora californiana Post-Concrete.)
Em comparação com a Europa ou os Estados
Unidos, na China, o nascimento da música experimental fora das portas da
Academia aconteceu tardiamente. Contudo, pela amostra de “An Anthology of
Chinese Experimental Music”, o “underground” chinês é fecundo: são dez as
cidades representadas (Pequim, Xangai, Chengdu, Guilin, Hangzhou, Shenzhen,
Guangzhou, Fuzhou, Shanxi e Harbin). Esta amplitude mostra que as experiências
com o som são hoje abundantes no país, mas as virtudes desta compilação
medem-se sobretudo pela qualidade da representação das diversas dimensões da
música experimental.
Desde o “ambient” sensorial de Dickson Dee até
ao “noise” agressivo e industrial dos Torturing Nurse (Xangai), passando pela
desconstrução em modo filigrana electrónica de Me:Mo (Pequim), a aproximação
“Techno” ao formato canção de Nara (Pequim), a narração dos fantasmas japoneses
e soviéticos de Yan Jun (Pequim), as raízes da música tradicional e o canto-pop
na máquina misturadora multimédia de Tats Lau (Hong Kong), ou a grande muralha
sónica de D!O!D!O!D! (Li Jianhong + Huangjin, de Hangzhou), a geografia desta
música é vasta.
Como porta de entrada no mundo deste universo
que desafia convenções, “An Anthology of Chinese Experimental Music” cumpre
eficazmente a missão. Não se pense, no entanto, encontrar aqui algo
radicalmente moderno e diferente do que é feito noutras paragens. O que existe,
se assim se pode dizer, de “verdadeiramente chinês” nesta abordagem à música
experimental é a criatividade em estado puro e a sensação de descoberta de um
novo mundo por parte destes artistas que durante anos viveram numa realidade
arredada de influências exteriores.
O compositor e guru da música experimental
John Cage definiu que “uma acção experimental é uma acção cujo resultado ou
consequência não podem ser previstos”.
Tendo em conta que, na China, a música
experimental vive ainda um período primitivo e sem uma unidade propriamente
definida, os músicos chineses estarão numa posição privilegiada para colocarem
em prática a formulação de Cage. Quando não há passado, que futuro pode haver?
É este o desafio, mas ainda é cedo para uma resposta. (Continua)
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 25 de Fevereiro de 2011
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