sábado, 8 de agosto de 2015

Enter the void (parte II)*



Recapitulando: noite amena de Janeiro, em Macau. Lá para os lados da Xavier Pereira, num edifício industrial parcialmente reconvertido em sala de concertos que, desta vez, abre alas a uma sessão de “noise”, converso com um polaco residente no Japão que é considerado nos meandros da electrónica experimental uma verdadeira sumidade. Daqui a nada, Zbigniew Karkowski vai dirigir-se ao palco para uns vinte minutos desafiadores, mas, para já, depois de ter discorrido sobre a China que o desencanta, fala-me do Japão.

Desde 1995, Zbigniew tem poiso certo no país do sol nascente. É lá que volta sempre das inúmeras viagens que, agora, o trouxeram a Macau pela segunda vez.

Não é difícil perceber porque é que um artista como este polaco se sente em casa no Japão. Das inúmeras razões, Zbigniew mostra particular entusiasmo com o episódio em que, certa vez, depois de ter comprado um monitor em segunda mão, e perante o mau funcionamento do electrodoméstico, decide telefonar para a assistência técnica da marca fabricante (japonesa, claro está); no espaço de uma hora, conta efusivo, estava em sua casa um funcionário do gigante tecnológico em apreço, que se prontificou a substituir-lhe o aparelho usado por um novo em folha, depois de encarecidamente lhe ter pedido desculpa pelo incómodo.

Aparentemente, no mundo, só os japoneses cultivam esta espécie de brio de alta fidelidade nas mesmas doses extremas com que vêm brindando, há décadas, o universo das mais diferentes expressões artísticas. Do cinema à música, houve sempre, no Japão, um espaço ilimitado para o radicalismo como afirmação e destruição últimas de identidades e quejandos. Zbigniew, o anti-esteta, está em casa. Mas há sempre um mas.

Esse espírito que, de certo modo, poderíamos descrever como “rebelde”, esteve ameaçado no longo ciclo de bonança económica que terá adormecido os espíritos revoltosos. Algo terá mudado, todavia.
Pergunta-me se me recordo do sismo e do tsunami de há dois anos. O tempo passou mas os efeitos devastadores continuam, garante. Não é só a radiação que Zbigniew diz existir em níveis alarmantes, também em Tóquio. Toda a destruição e a forma como o governo e a empresa responsável pela central nuclear de Fukushima (não) geriram a crise, num misto de incompetência e dissimulação, provocaram nos japoneses um forte sentimento de revolta e indignação que alastrou também aos artistas e criativos.

“O Japão mudou muito desde essa crise. Os jovens perceberam, finalmente, que os media e o governo estiveram a mentir o tempo todo. É como se tivessem perdido a virgindade, a inocência. Antes, eram pequenos robôs que obedeciam: tens que trabalhar, ter um contrato para a vida numa grande empresa, criar uma família, ter um filho – porque dois é demais –, trabalhar, e tudo vai correr bem. De certo modo, até corria bem. As pessoas ganhavam bom dinheiro, os restaurantes estavam sempre cheios. O Japão nunca teve crises como temos agora na Europa, na Grécia, onde as pessoas passam fome.” Especialmente entre os mais jovens, nota, houve uma mudança. “Se lhes perguntamos o que pensam agora, dizem que os tentam controlar”.

Um dos efeitos visíveis desta situação, conta, percebe-se pela abertura de “muitas pequenas galerias, pequenos bares e discotecas”. De repente, “as pessoas agora fazem as suas próprias coisas”, como que libertas dos freios corporativos e empresariais.

Contudo, este “acordar” ainda está num estado frágil. “Há um mês tivemos eleições, no Japão. Ganhou Shinzo Abe, que esteve no poder há 5 anos, por cerca de 6 meses”.

Foi Abe, diz Zbigniew, o grande responsável pelos problemas com que o Japão se debate. “Criaram o sistema em que tudo é corrupto... Em que as comissões que deveriam regular as centrais, por exemplo, falharam completamente. Fiquei chocado”.

As últimas eleições, diz, foram “uma espécie de referendo sobre o futuro do Japão.” E o resultado que está à vista não agrada. “O que fizeram? Voltaram à porcaria que criou o actual estado de coisas”.

Perguntar ao niilista Zbigniew o que espera que aconteça a seguir é estar a pedir que diga “não sei”, e é mesmo isso que me diz quando lhe pergunto o que vai acontecer. Já que estamos nisto, arrisco e volto à carga: por que é que, no Japão e no resto da Ásia, são raros (comparando com o que se passa na Europa e nos Estados Unidos, para não ir mais longe) os exemplos de activismo (político, ideológico, etc.) nas expressões artísticas? “Não posso explicar com certeza, mas diria que isso deve-se à estrutura das sociedades. Terá que ver com o confucionismo, com o respeito pelas hierarquias, pelos mais velhos, pelo sistema, pela ordem –  tudo aquilo a que nós, na Europa, não ligamos.” Exemplifica: “No Japão nunca há greves. As pessoas aceitam o que lhes impõem. Não lhes passa pela cabeça, por causa de uma determinada decisão, parar de trabalhar”.

Mas ainda que a revolução não sirva de caução a desaforos do foro artístico, o atrevimento existe, como se fosse devido a uma geração espontânea. Ou será reacção? “A maior parte da arte, diria 99 por cento, é realmente comercial, mas o restante um por cento é o que há de mais extremo na música, e mesmo nas artes visuais. Nos últimos 20, 30 anos, tudo o que há de mais radical tem vindo do Japão. Vive-se um contexto que, na verdade, até é bom para a criatividade, porque tudo é consensual. Se quisermos furar isso, basicamente só temos uma escolha, que é sair completamente dessa situação”.

Duas opções, portanto: sim ou não. No fundo, comanda a mesma linguagem binária que Zbigniew vai agora expelir de um conjunto de maquinaria. “Made in Japan”, certamente.


* Título de um filme realizado por Gaspar Noé, passado no Japão, que contém sonoplastia da autoria de Zbigniew Karkowski, cabeça de cartaz de um concerto realizado em Macau, no passado dia 13 de Janeiro, na Live Music Assocation.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 25 de Janeiro de 2012

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