Houve um tempo em que as bandas “goth”,
“industrial”, “darkwave” e negrumes quejandos tinham, obrigatoriamente, nomes
em latim. A ideia, parecia-me, era que a “língua morta” emprestasse gravidade
ou, como eles diziam, “gravitas” à coisa. Hoje, com a excepção dos militantes
do “death metal” e causas arredores, nas indústrias musicais, já poucos adeptos
restam das declinações da Roma clássica ou da suposta circunspecção da língua
antiga. Por exemplo: se não fosse a grafia, a expressão Plvs Vltra (a forma
latina da expressão “mais além”) passava escorreita por inglesíssima. Mas com
Toko Yasuda, convém prestar uma atenção “plus ultra”.
Japonesa radicada nos Estados Unidos, Yasuda
tem sido, desde os anos 1990, comparsa leal de nomes como Blonde Redhead, Enon
e, mais recentemente, St. Vincent. Em 2012, lançou o primeiro disco como Plvs
Vltra, “Parthenon” (outra referência à Antiguidade, desta feita ao templo que
domina a Acrópole de Atenas), título que reforça a ligação a um longínquo
período da história e nos impele a perguntar: o que há num nome? Tudo e nada.
“Parthenon” não tem a tal gravidade de um
templo que reina sobre as ruínas do tempo. É um disco optimista e colorido.
Garrido. Visualmente, é forte. Cada música é uma vinheta desdobrável onde se
revelam “polaroids” desbotadas e fotogramas de alta definição. Gravura após
gravura, música após música, sentimo-nos de regresso aos tempos do
“shibuya-kei”, o género musical que toma emprestado o nome a um dos centros
gravitacionais de Tóquio e que elevava à condição de arte o coleccionismo de
discos e acções consequentes: cópia, colagem e criação.
Este espírito
cosmopolita vive bem na pop dançante de “Parthenon”, mesmo quando rodopia nas
rapsódias giratórias que Yasuda por vezes acciona, remexendo um caldeirão de
onde extrai uma poção que, apesar dos ingredientes familiares, não sabe
exactamente a algo que já tenhamos provado. É o que nos revela uma degustação
mais demorada, isto é, uma audição mais atenta – a música que à superfície nos
parece leve, ligeira, com estruturas convencionais (refrões e tudo), é na
verdade complexa. Assim que vamos desmontando as peças da bricolage, damos com
electrónicas várias, rock, hip-hop, electro e umas pitadas de experimentalismo,
tudo tão retro quanto futurista. A juntar tudo, além da voz doce de Yasuda,
está a sensibilidade pop que vem dos anos 1990 de Shibuya.
A qualidade fragmentária da música de Toko
Yasuda tem agora um novo capítulo. “Yo-Yo Blue”, o disco deste ano, lançado no
último mês de Abril, assemelha-se a uma manta de retalhos onde a pop que havia
em “Parthenon” foi completamente substituída pelo experimentalismo. Há colagens
sobre colagens, nunca se adivinhando o que vem a seguir, mesmo quando os temas
têm menos de um minuto de duração.
A abrir, “Lovely”, seduz-nos com Bollywood, um
“affair” que dura até aos primeiros instantes de “あっち池”, 52 segundos
passados no que parece ser um salão de jogos de “pachinko” subaquático. “Madame
Mademoiselle” aprofunda a submersão. “Sitcat” é Pizzicato Five “vintage” em
versão “lo-fi”, minimal e com tiques dos saudosos Sukia de “Contacto Espacial
Con El Tercer Sexo”. “999” começa com o que suponho ser um anúncio para adultos
em japonês e, a meio, transforma-se num mambo narcótico – estamos em território
de “exotica”, na companhia de Juan García Esquivel e Ferrante & Teicher, e
alguém que, mais à frente, em “Good Night” (o melhor tema) traz à memória
Rebecca Pan enlevada numa orquestra luxuriante. Todavia, em “Yo-Yo Blue”, o que
depressa surge, mais depressa desaparece. É tudo fugidio, esquivo, impossível
de agarrar ou conter.
Ainda que “Yo-Yo Blue” deixe o amargo de saber
a pouco, a verdade é que é isso que nos faz voltar ao disco da mesma maneira
que regressamos às fotografias que guardam instantes de quem e do que já não
temos – no fundo, imagens que são ecos. “A fuga abstracta do tempo”, escreveu
Pessoa. “É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas
que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha
recordação.” E que Yasuda transforma em coisas que chegam a ser música.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 10 de Maio de 2013
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