sábado, 8 de agosto de 2015

Coisas que chegam a ser música


Houve um tempo em que as bandas “goth”, “industrial”, “darkwave” e negrumes quejandos tinham, obrigatoriamente, nomes em latim. A ideia, parecia-me, era que a “língua morta” emprestasse gravidade ou, como eles diziam, “gravitas” à coisa. Hoje, com a excepção dos militantes do “death metal” e causas arredores, nas indústrias musicais, já poucos adeptos restam das declinações da Roma clássica ou da suposta circunspecção da língua antiga. Por exemplo: se não fosse a grafia, a expressão Plvs Vltra (a forma latina da expressão “mais além”) passava escorreita por inglesíssima. Mas com Toko Yasuda, convém prestar uma atenção “plus ultra”.

Japonesa radicada nos Estados Unidos, Yasuda tem sido, desde os anos 1990, comparsa leal de nomes como Blonde Redhead, Enon e, mais recentemente, St. Vincent. Em 2012, lançou o primeiro disco como Plvs Vltra, “Parthenon” (outra referência à Antiguidade, desta feita ao templo que domina a Acrópole de Atenas), título que reforça a ligação a um longínquo período da história e nos impele a perguntar: o que há num nome? Tudo e nada.

“Parthenon” não tem a tal gravidade de um templo que reina sobre as ruínas do tempo. É um disco optimista e colorido. Garrido. Visualmente, é forte. Cada música é uma vinheta desdobrável onde se revelam “polaroids” desbotadas e fotogramas de alta definição. Gravura após gravura, música após música, sentimo-nos de regresso aos tempos do “shibuya-kei”, o género musical que toma emprestado o nome a um dos centros gravitacionais de Tóquio e que elevava à condição de arte o coleccionismo de discos e acções consequentes: cópia, colagem e criação. 

Este espírito cosmopolita vive bem na pop dançante de “Parthenon”, mesmo quando rodopia nas rapsódias giratórias que Yasuda por vezes acciona, remexendo um caldeirão de onde extrai uma poção que, apesar dos ingredientes familiares, não sabe exactamente a algo que já tenhamos provado. É o que nos revela uma degustação mais demorada, isto é, uma audição mais atenta – a música que à superfície nos parece leve, ligeira, com estruturas convencionais (refrões e tudo), é na verdade complexa. Assim que vamos desmontando as peças da bricolage, damos com electrónicas várias, rock, hip-hop, electro e umas pitadas de experimentalismo, tudo tão retro quanto futurista. A juntar tudo, além da voz doce de Yasuda, está a sensibilidade pop que vem dos anos 1990 de Shibuya.

A qualidade fragmentária da música de Toko Yasuda tem agora um novo capítulo. “Yo-Yo Blue”, o disco deste ano, lançado no último mês de Abril, assemelha-se a uma manta de retalhos onde a pop que havia em “Parthenon” foi completamente substituída pelo experimentalismo. Há colagens sobre colagens, nunca se adivinhando o que vem a seguir, mesmo quando os temas têm menos de um minuto de duração.

A abrir, “Lovely”, seduz-nos com Bollywood, um “affair” que dura até aos primeiros instantes deあっち池, 52 segundos passados no que parece ser um salão de jogos de “pachinko” subaquático. “Madame Mademoiselle” aprofunda a submersão. “Sitcat” é Pizzicato Five “vintage” em versão “lo-fi”, minimal e com tiques dos saudosos Sukia de “Contacto Espacial Con El Tercer Sexo”. “999” começa com o que suponho ser um anúncio para adultos em japonês e, a meio, transforma-se num mambo narcótico – estamos em território de “exotica”, na companhia de Juan García Esquivel e Ferrante & Teicher, e alguém que, mais à frente, em “Good Night” (o melhor tema) traz à memória Rebecca Pan enlevada numa orquestra luxuriante. Todavia, em “Yo-Yo Blue”, o que depressa surge, mais depressa desaparece. É tudo fugidio, esquivo, impossível de agarrar ou conter.

Ainda que “Yo-Yo Blue” deixe o amargo de saber a pouco, a verdade é que é isso que nos faz voltar ao disco da mesma maneira que regressamos às fotografias que guardam instantes de quem e do que já não temos – no fundo, imagens que são ecos. “A fuga abstracta do tempo”, escreveu Pessoa. “É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.” E que Yasuda transforma em coisas que chegam a ser música.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 10 de Maio de 2013 

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