Na apresentação do disco de estreia dos
Ensemble Pearl, o homónimo “Ensemble Pearl”, o mentor do grupo, Stephen
O’Malley (guitarrista dos gurus do “drone metal” Sunn O))) e KTL) declara uns
quantos pontos de referência e descrições, pistas para uma audição bem
palmilhada que vão do emblemático “Hex”, o disco que quebrou o silêncio dos
Earth, em 2005, ao “surf rock”, passando pelos primórdios do psicadelismo “new
age” dos Tangerine Dream. O’Malley destaca ainda que, em “Ensemble Pearl”, “em
vez de explosões enchendo o som, as contribuições dos colaboradores flutuam no
espaço com dinâmicas positivas e negativas. Não há fronteiras patrulhadas, o
que permite deslocações de um lugar para o outro sem qualquer impedimento.” Os
lugares, lê-se um pouco adiante, são na verdade imagens: “aspersões de espuma”,
“psicadelismo”, “a passagem de um estrondo”, “um ruído delicado”; tudo parte de
“uma deriva majestosa nas águas profundas de uma atmosfera ‘dub’”.
O cartão de visita, por mais excêntrico, não
deixa de ilustrar com acerto, ainda que seja incompleto. E aqui reside a
grandeza desta música: a virtude de se estender numa tábua rasa e de, apesar da
intensidade impositiva do som, se formar num quadro negro onde cada ouvinte
projecta livremente o que escuta e o que sente. É isso que, de resto, continua
a surpreender O’Malley, como o próprio confessa em entrevista à página
electrónica “ATTN:Magazine”: “Fico sempre surpreendido com as diferentes formas
que as pessoas usam para escrever ou falar da música. É quase como se existisse
uma vibração diferente para cada pessoa.” A confirmar-se que há essa vibração
única para cada um (hipótese altamente provável), muito se deverá aos estímulos
que despertam o frémito interior. O seu a seu dono.
Logo quando foi anunciado que existia e que
preparava um disco, o Ensemble Pearl provocou casos sérios de comoções entre
melómanos por esse mundo fora. Não era para menos. De repente, juntavam-se no
mesmo estúdio os músicos que nos últimos anos mais fizeram (e fazem) por se
assemelhar às forças vivas da natureza. Quais deuses dos trovões, eis Stephen
O’Malley, William Herzog (baixista de Jesse Sykes & the Sweet Hereafter) e os
japoneses Atsuo e Michio Kurihara, dos Boris.
A ligação japonesa é crucial e aconteceu quase
por acaso: uma directora artística de teatro, a francesa Gisèle Vienne, com
quem O’Malley tem colaborado regularmente, co-produziu uma peça com um centro
de artes contemporâneas de Yokohama e pediu ao guitarrista música para a peça.
Um dos requisitos estabelecia que teria que haver músicos japoneses envolvidos,
num trabalho que deveria ser desenvolvido no País do Sol Nascente. O’Malley viu
imediatamente a oportunidade de voltar a trabalhar com os Boris, parceiros de
aventuras antigas. Uma parte do que se ouve em “Ensemble Pearl” acabou por ser
utilizada na peça “This Is How You Will Disappear”, mas os músicos sentiram que
havia material que merecia ser aproveitado para um disco. E assim aconteceu.
Ao contrário do pós-rock e do “doom metal” (rock
pesado com guitarras distorcidas em
proeminência e tempos arrastados) a que todos os músicos envolvidos neste
projecto estão associados, em “Ensemble Pearl” a premissa estética aponta para
outras direcções. A mais evidente, como O’Malley cita, é “Hex”, dos
norte-americanos Earth, um disco pleno de guitarras em lenta evolução,
atmosféricas e quase estáticas, esparsas, quais “drones” sobrevoando terras
americanas de onde se ouvem, lá em baixo, quase abafados, proto-blues
apocalípticos. No osso, a música de “Ensemble Pearl” apresenta propriedades
semelhantes, mas aqui tudo se adensa ao ponto de se tornar pesado, tenso e
quase intransponível de compacto, mas, ainda assim, longe dos monólitos negros dos
Sunn O))).
Dividido entre peças que rondam, em média, os cinco
minutos e outras que, na segunda parte, chegam aos 20 minutos, o disco arranca
com “Ghost Parade”, lenta progressão de “drones” (efeitos harmónicos em que uma
nota ou acorde ouve-se continuamente ao longo de um tema) pontuada por um gongo
paciente e autoritário. Ao fim dos primeiros 5 minutos, o tempo pareceu
estender-se para lá da contagem do relógio. Efeito, escusado dizer, da lentidão
hipnótica que, ao segundo tema, “Painting on a Corpse”, parece dissipar-se no
compasso repetitivo, mas em crescendo de intensidade da percussão de Atsuo,
acompanhado pelas guitarras que agora nos transportam para um “western”
crepuscular, deixando-nos a pensar que o deserto é o território de eleição de
“Ensemble Pearl”, mesmo quando, em “Giant”(o único tema feito apenas de
“drones”, sem secção rítmica), o objectivo é fazer soar a guitarra como ondas
gigantescas do Pacífico, tal como O’Malley terá pedido ao japonês Michio
Kurihara.
“Sexy Angle” encerra o disco. Durante vinte
minutos, vivemos com fantasmas “dub”, ecos libertados da bateria primitiva,
arrastada e espectral, assombrando guitarras que se revelam e escondem sem
pressas, sem movimentos bruscos, fazendo-se ouvir como criaturas de uma noite
escura e da qual, se não entrarmos, não podemos sair. Devagar se foi longe e
tão depressa não ouviremos nada assim.
“Ensemble
Pearl”
Ensemble
Pearl
2013,
Drag City
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 3 de Maio de 2013
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