sábado, 8 de agosto de 2015

Não entres tão depressa nessa noite escura


Na apresentação do disco de estreia dos Ensemble Pearl, o homónimo “Ensemble Pearl”, o mentor do grupo, Stephen O’Malley (guitarrista dos gurus do “drone metal” Sunn O))) e KTL) declara uns quantos pontos de referência e descrições, pistas para uma audição bem palmilhada que vão do emblemático “Hex”, o disco que quebrou o silêncio dos Earth, em 2005, ao “surf rock”, passando pelos primórdios do psicadelismo “new age” dos Tangerine Dream. O’Malley destaca ainda que, em “Ensemble Pearl”, “em vez de explosões enchendo o som, as contribuições dos colaboradores flutuam no espaço com dinâmicas positivas e negativas. Não há fronteiras patrulhadas, o que permite deslocações de um lugar para o outro sem qualquer impedimento.” Os lugares, lê-se um pouco adiante, são na verdade imagens: “aspersões de espuma”, “psicadelismo”, “a passagem de um estrondo”, “um ruído delicado”; tudo parte de “uma deriva majestosa nas águas profundas de uma atmosfera ‘dub’”.

O cartão de visita, por mais excêntrico, não deixa de ilustrar com acerto, ainda que seja incompleto. E aqui reside a grandeza desta música: a virtude de se estender numa tábua rasa e de, apesar da intensidade impositiva do som, se formar num quadro negro onde cada ouvinte projecta livremente o que escuta e o que sente. É isso que, de resto, continua a surpreender O’Malley, como o próprio confessa em entrevista à página electrónica “ATTN:Magazine”: “Fico sempre surpreendido com as diferentes formas que as pessoas usam para escrever ou falar da música. É quase como se existisse uma vibração diferente para cada pessoa.” A confirmar-se que há essa vibração única para cada um (hipótese altamente provável), muito se deverá aos estímulos que despertam o frémito interior. O seu a seu dono.

Logo quando foi anunciado que existia e que preparava um disco, o Ensemble Pearl provocou casos sérios de comoções entre melómanos por esse mundo fora. Não era para menos. De repente, juntavam-se no mesmo estúdio os músicos que nos últimos anos mais fizeram (e fazem) por se assemelhar às forças vivas da natureza. Quais deuses dos trovões, eis Stephen O’Malley, William Herzog (baixista de Jesse Sykes & the Sweet Hereafter) e os japoneses Atsuo e Michio Kurihara, dos Boris.

A ligação japonesa é crucial e aconteceu quase por acaso: uma directora artística de teatro, a francesa Gisèle Vienne, com quem O’Malley tem colaborado regularmente, co-produziu uma peça com um centro de artes contemporâneas de Yokohama e pediu ao guitarrista música para a peça. Um dos requisitos estabelecia que teria que haver músicos japoneses envolvidos, num trabalho que deveria ser desenvolvido no País do Sol Nascente. O’Malley viu imediatamente a oportunidade de voltar a trabalhar com os Boris, parceiros de aventuras antigas. Uma parte do que se ouve em “Ensemble Pearl” acabou por ser utilizada na peça “This Is How You Will Disappear”, mas os músicos sentiram que havia material que merecia ser aproveitado para um disco. E assim aconteceu.

Ao contrário do pós-rock e do “doom metal” (rock pesado com guitarras distorcidas  em proeminência e tempos arrastados) a que todos os músicos envolvidos neste projecto estão associados, em “Ensemble Pearl” a premissa estética aponta para outras direcções. A mais evidente, como O’Malley cita, é “Hex”, dos norte-americanos Earth, um disco pleno de guitarras em lenta evolução, atmosféricas e quase estáticas, esparsas, quais “drones” sobrevoando terras americanas de onde se ouvem, lá em baixo, quase abafados, proto-blues apocalípticos. No osso, a música de “Ensemble Pearl” apresenta propriedades semelhantes, mas aqui tudo se adensa ao ponto de se tornar pesado, tenso e quase intransponível de compacto, mas, ainda assim, longe dos monólitos negros dos Sunn O))).

Dividido entre peças que rondam, em média, os cinco minutos e outras que, na segunda parte, chegam aos 20 minutos, o disco arranca com “Ghost Parade”, lenta progressão de “drones” (efeitos harmónicos em que uma nota ou acorde ouve-se continuamente ao longo de um tema) pontuada por um gongo paciente e autoritário. Ao fim dos primeiros 5 minutos, o tempo pareceu estender-se para lá da contagem do relógio. Efeito, escusado dizer, da lentidão hipnótica que, ao segundo tema, “Painting on a Corpse”, parece dissipar-se no compasso repetitivo, mas em crescendo de intensidade da percussão de Atsuo, acompanhado pelas guitarras que agora nos transportam para um “western” crepuscular, deixando-nos a pensar que o deserto é o território de eleição de “Ensemble Pearl”, mesmo quando, em “Giant”(o único tema feito apenas de “drones”, sem secção rítmica), o objectivo é fazer soar a guitarra como ondas gigantescas do Pacífico, tal como O’Malley terá pedido ao japonês Michio Kurihara.

“Sexy Angle” encerra o disco. Durante vinte minutos, vivemos com fantasmas “dub”, ecos libertados da bateria primitiva, arrastada e espectral, assombrando guitarras que se revelam e escondem sem pressas, sem movimentos bruscos, fazendo-se ouvir como criaturas de uma noite escura e da qual, se não entrarmos, não podemos sair. Devagar se foi longe e tão depressa não ouviremos nada assim.

“Ensemble Pearl”
Ensemble Pearl
2013, Drag City 

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 3 de Maio de 2013

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