Não foi uma noite como as outras. Perto das
oito, subi à Fortaleza do Monte. No cimo, escolhi uma cadeira da plateia virada
para o palco e sentei-me. Outubro. Céu deserto e azul. Escuro. A brisa amansa o
calor e o coração. Uma paz. Dentro de momentos, Ryuichi Sakamoto há-de
sentar-se ao piano e Alva Noto (Carsten Nicolai) haverá de assumir os comandos
da maquinaria que agora está quieta e silenciosa. Ainda não se ouviu qualquer
som mas, na minha cabeça, desde que a dupla foi anunciada no cartaz do Festival
Internacional de Música de 2006 não ouço outra coisa: músicas com nomes
misteriosos (“Uoon I”, “Trioon II”) e timidamente poéticos (“Logic Moon”).
Escrevi então a propósito deste concerto: “A música dos dois é humilde,
recatada. Parca. Voa ora rasante, ora rasteira, mas guarda sempre a devida
distância. (...) Do lado de Alva Noto, o frio das máquinas, o digital; do de
Sakamoto, o calor humano. Um ser vivo. O racional e o emocional, a electrónica
e a acústica. (...) É notável como as forças em jogo não se subjugam, como
dialogam sem desconversar. (...) Piano melancólico e partículas electrónicas em
suspensão, trabalhadas numa filigrana paciente. Sakamoto empresta alma, mas os
mais atentos talvez se surpreendam com a humanidade e a gravidade das arritmias
com que Alva Noto vai marcando as frases do piano”.
Ryuichi Sakamoto, uma das poucas estrelas
japonesas com dimensão global, nunca foi estranho a colaborações, tendo um
historial longo que o emparelhou com músicos de jazz, da bossa nova, da pop, do
rock ou da electrónica, mas, com o holandês Alva Noto, abriu-se um novo trilho
na electrónica experimental, que, apesar da originalidade, foi acatado com
naturalidade pelos seguidores de ambos os músicos. Também não surpreendeu,
pouco tempo depois, a notícia de que o japonês iria trabalhar com o austríaco
Christian Fennesz, um dos mais respeitados nomes da nova música experimental.
E, diga-se ainda, também não surpreendeu que dali saíssem discos (três, até
agora) simplesmente magníficos.
O primeiro, “Sala Santa Cecília”, de 2005,
consiste apenas numa peça: 19 minutos de ruídos na beira do “noise” levitando
sob um tapete ambiental que, a espaços, confere travos orientais e místicos a
sons crus, elevando a música que a partir daí se vai decompondo lentamente até
ao ponto em que Sakamoto e Fennesz pegam para arrancar “Cendre”.
No primeiro álbum de longa-duração, editado em
2007, ao longo de 11 temas os dois remetem-se a posições bem definidas:
Sakamoto senta-se ao piano, Fennesz pega na guitarra e manuseia computadores.
Entre 2004 e 2006 ambos trocaram ficheiros à distância, partes de músicas que
iam sendo completadas na volta do correio. “Cendre”, o resultado, não sugere,
de todo, o processo fragmentado, dando antes a sensação de que os dois músicos
são colaboradores antigos, tal é a fluidez com que improvisação e composição se
vão conjugando.
O característico piano de Sakamoto, evocativo
dos franceses suaves do início do século passado, Satie e Debussy, divaga nas
nuvens da guitarra difusa e das electrónicas vaporosas de Fennesz. Ouvimos
“Haru” ou “Mono” e imediatamente conjuramos horizontes impossíveis que queremos
atravessar de olhos fechados.
Há ideias que esta música nos dita, mas tudo
reside mais na aparência e no poder de sugestão, nos espaços intermédios, nas
variações subtis – na tristeza que passa a melancolia, na surpresa que se
suspende na apreensão, na quietude que se transforma em paralisia, no dia que
entardece, na noite que fica escura.
Sakamoto e Fennesz parecem procurar com
perseverança todas as possibilidades que notas soltas, estáticas variadas e
silêncios avulsos podem querer dizer-nos. E dizem, mesmo quando apenas nos
miram, nos contemplam como observadores impassíveis.
Esse reino imaginário das possibilidades
voltou a ser explorado no disco seguinte, “Flumina”, de 2011, o mais ascético
dos trabalhos da dupla até à data. É também o mais longo. No total, 24 temas
baseados em improvisos ao piano que Sakamoto gravou durante uma digressão pelo
Japão. Cada uma das peças era tocada num tom diferente no início de cada
concerto daquela “tournée”, sempre com o pensamento na colaboração com o
austríaco, explicou Sakamoto. Os 24 temas representam as 24 escalas maiores e
menores da música ocidental, e têm títulos como “0318” ou “0319”. Na maior parte
das vezes só os distinguimos porque há uma pausa entre eles.
Depois, voltamos a olhar para a imagem da
capa: um plano apertado do mar, em que vemos os pequenos cumes da água,
ondulações tímidas e efémeras. Um mar que parece todo igual se o avistamos de
longe, sendo impossível perceber que se divide em gotas, uma noção que desafia
o nosso entendimento, não só do espaço e da dimensão, do volume, mas também do
tempo que tal tarefa nos levaria.
A música “ambient” privilegia a distensão
infinita, as peças com dezenas de minutos que acabam como começam, parecendo
que existiram desde sempre, sem princípio nem fim, como se tivessem sido
colhidas da eternidade. Imagino um deus recostado entre cúmulos de nuvens a
estender o braço e a agarrar com a mão cheia um pedaço de céu. Com a sua música
atmosférica, Sakamoto e Fennesz não nos dão o céu, na verdade, mas prometem.
Isso que baste.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 24 de Maio de 2013
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