sábado, 8 de agosto de 2015

Da atmosfera










Não foi uma noite como as outras. Perto das oito, subi à Fortaleza do Monte. No cimo, escolhi uma cadeira da plateia virada para o palco e sentei-me. Outubro. Céu deserto e azul. Escuro. A brisa amansa o calor e o coração. Uma paz. Dentro de momentos, Ryuichi Sakamoto há-de sentar-se ao piano e Alva Noto (Carsten Nicolai) haverá de assumir os comandos da maquinaria que agora está quieta e silenciosa. Ainda não se ouviu qualquer som mas, na minha cabeça, desde que a dupla foi anunciada no cartaz do Festival Internacional de Música de 2006 não ouço outra coisa: músicas com nomes misteriosos (“Uoon I”, “Trioon II”) e timidamente poéticos (“Logic Moon”). Escrevi então a propósito deste concerto: “A música dos dois é humilde, recatada. Parca. Voa ora rasante, ora rasteira, mas guarda sempre a devida distância. (...) Do lado de Alva Noto, o frio das máquinas, o digital; do de Sakamoto, o calor humano. Um ser vivo. O racional e o emocional, a electrónica e a acústica. (...) É notável como as forças em jogo não se subjugam, como dialogam sem desconversar. (...) Piano melancólico e partículas electrónicas em suspensão, trabalhadas numa filigrana paciente. Sakamoto empresta alma, mas os mais atentos talvez se surpreendam com a humanidade e a gravidade das arritmias com que Alva Noto vai marcando as frases do piano”.

Ryuichi Sakamoto, uma das poucas estrelas japonesas com dimensão global, nunca foi estranho a colaborações, tendo um historial longo que o emparelhou com músicos de jazz, da bossa nova, da pop, do rock ou da electrónica, mas, com o holandês Alva Noto, abriu-se um novo trilho na electrónica experimental, que, apesar da originalidade, foi acatado com naturalidade pelos seguidores de ambos os músicos. Também não surpreendeu, pouco tempo depois, a notícia de que o japonês iria trabalhar com o austríaco Christian Fennesz, um dos mais respeitados nomes da nova música experimental. E, diga-se ainda, também não surpreendeu que dali saíssem discos (três, até agora) simplesmente magníficos.

O primeiro, “Sala Santa Cecília”, de 2005, consiste apenas numa peça: 19 minutos de ruídos na beira do “noise” levitando sob um tapete ambiental que, a espaços, confere travos orientais e místicos a sons crus, elevando a música que a partir daí se vai decompondo lentamente até ao ponto em que Sakamoto e Fennesz pegam para arrancar “Cendre”.

No primeiro álbum de longa-duração, editado em 2007, ao longo de 11 temas os dois remetem-se a posições bem definidas: Sakamoto senta-se ao piano, Fennesz pega na guitarra e manuseia computadores. Entre 2004 e 2006 ambos trocaram ficheiros à distância, partes de músicas que iam sendo completadas na volta do correio. “Cendre”, o resultado, não sugere, de todo, o processo fragmentado, dando antes a sensação de que os dois músicos são colaboradores antigos, tal é a fluidez com que improvisação e composição se vão conjugando.

O característico piano de Sakamoto, evocativo dos franceses suaves do início do século passado, Satie e Debussy, divaga nas nuvens da guitarra difusa e das electrónicas vaporosas de Fennesz. Ouvimos “Haru” ou “Mono” e imediatamente conjuramos horizontes impossíveis que queremos atravessar de olhos fechados.

Há ideias que esta música nos dita, mas tudo reside mais na aparência e no poder de sugestão, nos espaços intermédios, nas variações subtis – na tristeza que passa a melancolia, na surpresa que se suspende na apreensão, na quietude que se transforma em paralisia, no dia que entardece, na noite que fica escura.

Sakamoto e Fennesz parecem procurar com perseverança todas as possibilidades que notas soltas, estáticas variadas e silêncios avulsos podem querer dizer-nos. E dizem, mesmo quando apenas nos miram, nos contemplam como observadores impassíveis.

Esse reino imaginário das possibilidades voltou a ser explorado no disco seguinte, “Flumina”, de 2011, o mais ascético dos trabalhos da dupla até à data. É também o mais longo. No total, 24 temas baseados em improvisos ao piano que Sakamoto gravou durante uma digressão pelo Japão. Cada uma das peças era tocada num tom diferente no início de cada concerto daquela “tournée”, sempre com o pensamento na colaboração com o austríaco, explicou Sakamoto. Os 24 temas representam as 24 escalas maiores e menores da música ocidental, e têm títulos como “0318” ou “0319”. Na maior parte das vezes só os distinguimos porque há uma pausa entre eles.

Depois, voltamos a olhar para a imagem da capa: um plano apertado do mar, em que vemos os pequenos cumes da água, ondulações tímidas e efémeras. Um mar que parece todo igual se o avistamos de longe, sendo impossível perceber que se divide em gotas, uma noção que desafia o nosso entendimento, não só do espaço e da dimensão, do volume, mas também do tempo que tal tarefa nos levaria.

A música “ambient” privilegia a distensão infinita, as peças com dezenas de minutos que acabam como começam, parecendo que existiram desde sempre, sem princípio nem fim, como se tivessem sido colhidas da eternidade. Imagino um deus recostado entre cúmulos de nuvens a estender o braço e a agarrar com a mão cheia um pedaço de céu. Com a sua música atmosférica, Sakamoto e Fennesz não nos dão o céu, na verdade, mas prometem. Isso que baste.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 24 de Maio de 2013

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