sábado, 8 de agosto de 2015

Música que dava um filme indiano


Quando a geografia tinha dimensão humana: “No passado, havia quem arriscasse a vida nas Índias ou nas Américas para trazer coisas que hoje nos parecem irrisórias: madeiras de pau-brasil; corantes vermelhos ou pimenta, tão loucamente apreciada no tempo de Henrique IV que a Corte usava-a, em caixas de bombons, para mascar. Esses estímulos visuais ou olfactivos, esse alegre calor para os olhos, delicioso queimar para a língua, acrescentavam um registo novo ao teclado sensorial de uma civilização que não suspeitava da sua sensaboria. Estamos assim tão distantes desse tempo? Claude Lévi-Strauss declarava, em 1955, “o fim das viagens”, esse momento em que o antropólogo se encontrava “prisioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo, confrontado com um espectáculo prodigioso ao qual tudo ou quase tudo passaria despercebido – ou pior, inspiraria troça e desprezo –; ora viajante moderno, correndo atrás dos vestígios de uma realidade desaparecida”. 

O dilema permanece. O tempo, já se sabe, volta para trás, mas apenas na nossa mente. O mundo, esse, segue o seu curso, indiferente. Contentemo-nos com os tais “vestígios de uma realidade desaparecida”, enquanto eles, os vestígios, andam por cá. Todavia, dá-se muitas vezes o caso, os vestígios, afinal, não são de uma realidade desaparecida, mas sim de uma que ainda não apareceu.
“Futurismo”, a palavra que ocorria para descrever o que se passava em “Ten Ragas To a Disco Beat”, o álbum de 1982 em que o indiano Charanjit Singh inventava, inadvertidamente, o “acid house” (a história foi contada nestas páginas há dois anos), é também a expressão que surge a propósito de “Ilectro!”, de Ilaiyaraaja, mais um capítulo de arqueologia musical com selo da editora Finders Keepers dedicado ao maestro mais notável das bandas sonoras da indústria cinematográfica Tamil.

Músico, compositor, letrista, cantor, Ilaiyaraaja assinou, nos últimos 30 anos, mais de 4500 canções e compôs bandas-sonoras para mais de 950 filmes. Ao contrário de Charanjit Singh, que sintetizou influências ocidentais e orientais, misturando música tradicional indiana com a música que se ouvia nas discotecas da Europa para criar algo de novo, Ilaiyaraaja parece menos preocupado em definir o que não existe do que em celebrar o que abunda. Há de tudo: pop, rock, psicadelismo, afro, funk, disco, bossa nova, jazz, pop italiana dos anos 1960 ou reggae, géneros ocidentais explorados com apetite para depois serem servidos no mercado indiano, que facilmente reconheceu nas composições de Ilaiyaraaja as vozes, melodias e harmonias, a alegria e a exuberância, o colorido e a euforia que são características queridas de Bollywood (ou Kollywood, a micro-indústria Tamil).

Ao revisitar mãos cheias de géneros musicais e, ao mesmo tempo, preservar qualidades tradicionais da cultura popular indiana, equilibrando nos pratos da balança modernismo e memória, Ilaiyaraaja faz sobressair cada um dos elementos – facilmente distinguíveis –, enquanto cria um território à parte para esta música fortemente emotiva e dramática, tanto quanto é, ainda, inclassificável.

As compilações “Ilectro!”, deste ano, ou “Solla Solla”, a primeira recolha do trabalho de Ilaiyaraaja na editora Finders Keepers, publicada em 2011, acentuam a impossibilidade de arrumar o indiano em compartimentos. Aparentemente, o pretexto para reunir os 17 temas de “Ilectro!” é a vocação comum a todos para funcionarem na pista de dança. Electrizante, a música de Ilaiyaraaja merece bem o título do segundo álbum dos Funkadelic: “Free your mind... and your ass will follow”. Gostava de ver. Não tenham medo de divertir-se.

“Ilectro!”
Ilaiyaraaja
2013, Finders Keepers

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 31 de Maio de 2013 

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