Quando a geografia tinha dimensão humana: “No
passado, havia quem arriscasse a vida nas Índias ou nas Américas para trazer
coisas que hoje nos parecem irrisórias: madeiras de pau-brasil; corantes
vermelhos ou pimenta, tão loucamente apreciada no tempo de Henrique IV que a
Corte usava-a, em caixas de bombons, para mascar. Esses estímulos visuais ou
olfactivos, esse alegre calor para os olhos, delicioso queimar para a língua,
acrescentavam um registo novo ao teclado sensorial de uma civilização que não
suspeitava da sua sensaboria”. Estamos assim tão distantes desse tempo? Claude
Lévi-Strauss declarava, em 1955, “o fim das viagens”, esse momento em que o
antropólogo se encontrava “prisioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo,
confrontado com um espectáculo prodigioso ao qual tudo ou quase tudo passaria
despercebido – ou pior, inspiraria troça e desprezo –; ora viajante moderno,
correndo atrás dos vestígios de uma realidade desaparecida”.
O dilema
permanece. O tempo, já se sabe, volta para trás, mas apenas na nossa mente. O
mundo, esse, segue o seu curso, indiferente. Contentemo-nos com os tais
“vestígios de uma realidade desaparecida”, enquanto eles, os vestígios, andam
por cá. Todavia, dá-se muitas vezes o caso, os vestígios, afinal, não são de
uma realidade desaparecida, mas sim de uma que ainda não apareceu.
“Futurismo”, a palavra que ocorria para
descrever o que se passava em “Ten Ragas To a Disco Beat”, o álbum de 1982 em
que o indiano Charanjit Singh inventava, inadvertidamente, o “acid house” (a
história foi contada nestas páginas há dois anos), é também a expressão que
surge a propósito de “Ilectro!”, de Ilaiyaraaja, mais um capítulo de
arqueologia musical com selo da editora Finders Keepers dedicado ao maestro mais
notável das bandas sonoras da indústria cinematográfica Tamil.
Músico, compositor, letrista, cantor,
Ilaiyaraaja assinou, nos últimos 30 anos, mais de 4500 canções e compôs
bandas-sonoras para mais de 950 filmes. Ao contrário de Charanjit Singh, que
sintetizou influências ocidentais e orientais, misturando música tradicional
indiana com a música que se ouvia nas discotecas da Europa para criar algo de
novo, Ilaiyaraaja parece menos preocupado em definir o que não existe do que em
celebrar o que abunda. Há de tudo: pop, rock, psicadelismo, afro, funk, disco,
bossa nova, jazz, pop italiana dos anos 1960 ou reggae, géneros ocidentais
explorados com apetite para depois serem servidos no mercado indiano, que
facilmente reconheceu nas composições de Ilaiyaraaja as vozes, melodias e
harmonias, a alegria e a exuberância, o colorido e a euforia que são
características queridas de Bollywood (ou Kollywood, a micro-indústria Tamil).
Ao revisitar mãos cheias de géneros musicais
e, ao mesmo tempo, preservar qualidades tradicionais da cultura popular
indiana, equilibrando nos pratos da balança modernismo e memória, Ilaiyaraaja
faz sobressair cada um dos elementos – facilmente distinguíveis –, enquanto
cria um território à parte para esta música fortemente emotiva e dramática,
tanto quanto é, ainda, inclassificável.
As compilações “Ilectro!”, deste ano, ou
“Solla Solla”, a primeira recolha do trabalho de Ilaiyaraaja na editora Finders
Keepers, publicada em 2011, acentuam a impossibilidade de arrumar o indiano em
compartimentos. Aparentemente, o pretexto para reunir os 17 temas de “Ilectro!”
é a vocação comum a todos para funcionarem na pista de dança. Electrizante, a
música de Ilaiyaraaja merece bem o título do segundo álbum dos Funkadelic:
“Free your mind... and your ass will follow”. Gostava de ver. Não tenham medo
de divertir-se.
“Ilectro!”
Ilaiyaraaja
2013,
Finders Keepers
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