sábado, 8 de agosto de 2015

Da terra prometida


Em 1983, Nile Rodgers (lendário produtor que pôs meio mundo a dançar quando formou, com Bernie Edwards, os Chic) lançou “Adventures in the Land of the Good Groove”. Na capa do disco surge o que parece ser um mapa dos antigos, daqueles do tempo em que o mundo tinha ainda outra forma, outra dimensão. A imagem, na sua imprecisão, deixa-nos com a sensação de estarmos a olhar para um daqueles outros mapas de tesouros escondidos que ciosos piratas desenhavam para não se esquecerem do local onde enterravam arcas valiosas, numa representação misteriosa que só eles poderiam deslindar. Talvez por isso, hoje, The Land of the Good Groove continue um paraíso virgem, intacto, ainda à espera de ser descoberto. Mas há outros trópicos desconhecidos, algures.

Vinte e sete anos depois de Nile Rodgers foi a vez de dois japoneses apresentarem ao mundo as coordenadas de uma outra terra prometida. “Gozmez Land * Chaosexotica” é o título do primeiro longa-duração de COS/MES, duo formado por Flatic e 5ive (Koji Hanazato e Takanori Goto). Ambos fazem parte do colectivo artístico Tasha Hisha, baseado em Tóquio, um colorido grupo que junta “skaters” e “ravers”, realizadores e “graffiters” e tudo o mais que a capital japonesa albergar na sua urbe imensa.

Fazendo jus à diversidade do ambiente, a música que os COS/MES, desde 2007, têm vindo a editar reflecte influências díspares que praticamente atravessam os últimos 50 anos de música popular, comprimidos aqui numa música que, na sua forma, tem os parentes mais directos na House Music e no Jazz de vocação interplanetária, tal como foi imaginado por Miles Davis ou por Sun Ra.

Apesar da regularidade em certos circuitos alternativos iluminados por bolas de espelhos que não param de girar, a carreira de COS/MES só haveria de disparar para outros níveis depois de Andrew Hogge (Lovefingers) os ter acolhido na sua editora, ESP Institute, o selo que “Gozmez Land * Chaosexotica” trouxe no verso da capa quando veio ao mundo, em 2010.

Tinha sido ainda nesse ano que os COS/MES editaram quatro EP, material aproveitado depois para o LP, ao qual se junta meia dúzia de temas inéditos até então.

Se tivéssemos que definir a música de “Gozmez Land * Chaosexotica” numa única expressão, talvez a mais acertada fosse “psychedelic disco”, mas mesmo a junção destes dois desvairados universos não evita que se deixe de fora um sem fim de facetas de uma sonoridade sem complexos e livre com que os dois japoneses nos brindam.

Logo a abrir, “From Outer Space” oferece-nos os sons de uma selva nocturna que servem de pano de fundo a um ritmo que parece decalcado de “Moments in Love”, o clássico balear dos Art of Noise. Quando nos julgamos em terra firme, familiar, irrompe aquilo que se assemelha a um canto difónico, típico das estepes mongóis. Mas eis que “Gozmez Land”, logo de seguida, nos devolve à selva e nos deixa a meio de um ritual tribal. Ressoam congas diabólicas e cânticos esporádicos, vozes de homens e de mulheres e outras criaturas, e ainda mais vozes processadas para se assemelharem a máquinas. 

Ainda não passaram 5 minutos e estamos completamente perdidos no caos exótico desta terra nova.
A propósito do tema que dá título ao álbum, a ESP Institut admite que os COS/MES apresentam uma música “difícil de descrever por palavras”, para a seguir nos sugerirem imaginar Fitzcarraldo (o obstinado personagem do filme de Herzog que queria, a todo o custo, construir uma ópera na selva) a ser incitado não por Enrico Caruso, mas por música House.

Aos poucos, vamos recuperando o fôlego e os passos já dados para assimilar que esta é música de dança para ouvir como se assistíssemos a um filme de “suspense” dos bons, daqueles em que nunca se sabe o que vai acontecer a seguir.

Há por aqui o que não julgaríamos possível encontrar numa pista de dança, seja numa discoteca, seja no areal de uma praia deserta. Pathos, por exemplo, carga dramática, paixão, soberba.

Num tempo em que a falta de ideias é muitas vezes disfarçada com o excesso de referências e colagens que quanto mais absurdas mais originais parecem, ainda que não disfarcem a inevitável inconsequência e não resistam à atenção demorada, “Gozmez Land * Chaosexotica” é um dos documentos que melhor define uma época da música electrónica. Que este disco tenha vindo do Japão, sorvedouro por excelência e simultaneamente recalcitrante e infinitamente criativo, não admira. “The sun rises in the east”, de facto.


Publicado no jornal Hoje Macau no dia 2 de Março de 2012 

Sem comentários:

Enviar um comentário