i. Se não estivéssemos em Macau, as Linhas de
Acção Governativa que o Chefe do Executivo apresentou na passada terça-feira
poderiam ser entendidas como um último suspiro de um político cansado antes de
sair de cena, um esmorecido “adeus e até sempre” em que o líder do Governo não
se compromete com qualquer plano ou medida concretos, exceptuando os paliativos
que têm sido administrados ano após ano e que, agora, chegam aos 11,3 mil
milhões de patacas, entre subvenções, pensões, subsídios, devoluções e
isenções. O presente mandato de Chui Sai On termina em meados do próximo ano e
o Chefe do Executivo, para já, diz que está concentrado nas tarefas de gestão
do Governo e que apenas pensará numa recandidatura após “uma autocrítica”. Se
não estivéssemos em Macau, admitir-se-ia que essa prometida avaliação à
actuação do Executivo desde 2009 poderia redundar na conclusão de que seria
preciso tudo mudar – deixando o palco da liderança ou assumindo uma postura
diferente, activa, mostrando uma verdadeira determinação que não se compadece
com uma infinitude de estudos intermináveis, intenções vagas e decisões
adiadas. Como estamos em Macau, talvez o mais certo seja que a tibieza
demonstrada se deva a um compasso de espera até que surja um programa eleitoral
em vez de umas Linhas de Acção Governativa. Como estamos em Macau, o “direito
natural” deverá seguir os seus trâmites. E assim se dá um passo atrás para dar
dois à frente lá mais adiante.
ii. O que podemos esperar? No discurso que
Chui Sai On leu na Assembleia Legislativa, uma das palavras que mais se ouviu
foi “talento”, repetida por 36 vezes. Motivo? O Governo quer criar “um
mecanismo eficiente de longo prazo para a formação de talentos locais”.
Previsivelmente, a espécie de máquina de fazer talentos não dispensa uma
“comissão” nem uma “base de dados” ou um “sistema de avaliação” dos talentos,
cujos “vários grupos” vão ser classificados “em função do tipo e do nível em
que se enquadram”, para “a selecção eficaz e a colocação adequada”. Deve ser
isto o “governo científico”. Que Macau deva ter “talentos locais” é uma ideia
difícil de contestar; mais difícil, contudo, é que possam ser criados por
despacho do Chefe do Executivo, ou que cresçam viçosos num ambiente
ultra-protegido e de facilitismo. A “colocação adequada” destas “elites” não
pode ser negociada, tal como pretende fazer o Governo, por exemplo, para ter
mais gente de Macau na gestão das operadoras do jogo. Os eventuais cargos no
topo das grandes empresas – ou em qualquer outro lugar, já agora –, devem ser
fruto do mérito e não de quotas. Mas também aqui temos razões para temer o
pior. Em Macau, o modelo de atribuição de salvo-condutos para o “sucesso” é
antigo e explica alguns deputados, empresários e outras figuras que o “regime”
inventou. Por que não deixar o mercado funcionar, como o Governo defende há
anos para justificar nada fazer contra a especulação imobiliária? Siga-se, pois
então, além do “laissez faire et laissez passer” de características locais,
também a lei da oferta e da procura. Acabe-se com os proteccionismos
injustificados numa sociedade onde existe pleno emprego e onde a necessidade de
mão-de-obra, da “qualificada” e não só, está continuamente a aumentar. Acabe-se
com as regras e as práticas que, quando não se limitam a dificultar a vinda
para Macau de pessoas que esperam contribuir com o seu trabalho, as enxotam sem
apelo nem agravo. Acabe-se com a selvajaria que grassa na especulação
imobiliária que, no limite, vai deixar a sociedade de Macau reduzida a ricos e
a pobres, porque quem não é uma coisa nem outra não terá lugar nesta terra. Da
forma como isto vai, não viveremos sob o predomínio económico ou político do
capital, simplesmente porque não há economia nem política – há apenas um
governo que chama a si toda a iniciativa, controlando, directa ou
indirectamente, a actividade pública e privada, que concede monopólios e
retalha serviços essenciais que depois são distribuídos e financiados como
prebendas, e que apresenta uma “prosperidade” dependente da exploração de um
vício, o jogo, e de favores da “mãe pátria”. Assim não haverá segundo sistema e
estaremos apenas entregues ao deus-dará, que de deus tem pouco ou nada e de dar
é só para alguns.
iii. “A maior desgraça de uma nação pobre é
que, em vez de produzir riqueza, produz ricos”, diz Mia Couto sobre o seu país,
Moçambique. Com a mesma razão, infelizmente, podemos também nós dizer sobre
Macau que a maior desgraça de um território rico é que, em vez de produzir
riqueza, produz pobres. Pobres que têm que discutir com ricos um salário mínimo
entre as 23 e as 30 patacas por hora, mas também pobres de espírito que só são
bem-aventurados no reino dos céus e aqui –maior das desgraças –, desceram todos
à terra.
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