sábado, 8 de agosto de 2015

Descida à terra

i. Se não estivéssemos em Macau, as Linhas de Acção Governativa que o Chefe do Executivo apresentou na passada terça-feira poderiam ser entendidas como um último suspiro de um político cansado antes de sair de cena, um esmorecido “adeus e até sempre” em que o líder do Governo não se compromete com qualquer plano ou medida concretos, exceptuando os paliativos que têm sido administrados ano após ano e que, agora, chegam aos 11,3 mil milhões de patacas, entre subvenções, pensões, subsídios, devoluções e isenções. O presente mandato de Chui Sai On termina em meados do próximo ano e o Chefe do Executivo, para já, diz que está concentrado nas tarefas de gestão do Governo e que apenas pensará numa recandidatura após “uma autocrítica”. Se não estivéssemos em Macau, admitir-se-ia que essa prometida avaliação à actuação do Executivo desde 2009 poderia redundar na conclusão de que seria preciso tudo mudar – deixando o palco da liderança ou assumindo uma postura diferente, activa, mostrando uma verdadeira determinação que não se compadece com uma infinitude de estudos intermináveis, intenções vagas e decisões adiadas. Como estamos em Macau, talvez o mais certo seja que a tibieza demonstrada se deva a um compasso de espera até que surja um programa eleitoral em vez de umas Linhas de Acção Governativa. Como estamos em Macau, o “direito natural” deverá seguir os seus trâmites. E assim se dá um passo atrás para dar dois à frente lá mais adiante.

ii. O que podemos esperar? No discurso que Chui Sai On leu na Assembleia Legislativa, uma das palavras que mais se ouviu foi “talento”, repetida por 36 vezes. Motivo? O Governo quer criar “um mecanismo eficiente de longo prazo para a formação de talentos locais”. Previsivelmente, a espécie de máquina de fazer talentos não dispensa uma “comissão” nem uma “base de dados” ou um “sistema de avaliação” dos talentos, cujos “vários grupos” vão ser classificados “em função do tipo e do nível em que se enquadram”, para “a selecção eficaz e a colocação adequada”. Deve ser isto o “governo científico”. Que Macau deva ter “talentos locais” é uma ideia difícil de contestar; mais difícil, contudo, é que possam ser criados por despacho do Chefe do Executivo, ou que cresçam viçosos num ambiente ultra-protegido e de facilitismo. A “colocação adequada” destas “elites” não pode ser negociada, tal como pretende fazer o Governo, por exemplo, para ter mais gente de Macau na gestão das operadoras do jogo. Os eventuais cargos no topo das grandes empresas – ou em qualquer outro lugar, já agora –, devem ser fruto do mérito e não de quotas. Mas também aqui temos razões para temer o pior. Em Macau, o modelo de atribuição de salvo-condutos para o “sucesso” é antigo e explica alguns deputados, empresários e outras figuras que o “regime” inventou. Por que não deixar o mercado funcionar, como o Governo defende há anos para justificar nada fazer contra a especulação imobiliária? Siga-se, pois então, além do “laissez faire et laissez passer” de características locais, também a lei da oferta e da procura. Acabe-se com os proteccionismos injustificados numa sociedade onde existe pleno emprego e onde a necessidade de mão-de-obra, da “qualificada” e não só, está continuamente a aumentar. Acabe-se com as regras e as práticas que, quando não se limitam a dificultar a vinda para Macau de pessoas que esperam contribuir com o seu trabalho, as enxotam sem apelo nem agravo. Acabe-se com a selvajaria que grassa na especulação imobiliária que, no limite, vai deixar a sociedade de Macau reduzida a ricos e a pobres, porque quem não é uma coisa nem outra não terá lugar nesta terra. Da forma como isto vai, não viveremos sob o predomínio económico ou político do capital, simplesmente porque não há economia nem política – há apenas um governo que chama a si toda a iniciativa, controlando, directa ou indirectamente, a actividade pública e privada, que concede monopólios e retalha serviços essenciais que depois são distribuídos e financiados como prebendas, e que apresenta uma “prosperidade” dependente da exploração de um vício, o jogo, e de favores da “mãe pátria”. Assim não haverá segundo sistema e estaremos apenas entregues ao deus-dará, que de deus tem pouco ou nada e de dar é só para alguns.

iii. “A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos”, diz Mia Couto sobre o seu país, Moçambique. Com a mesma razão, infelizmente, podemos também nós dizer sobre Macau que a maior desgraça de um território rico é que, em vez de produzir riqueza, produz pobres. Pobres que têm que discutir com ricos um salário mínimo entre as 23 e as 30 patacas por hora, mas também pobres de espírito que só são bem-aventurados no reino dos céus e aqui –maior das desgraças –, desceram todos à terra.


Publicado no jornal Hoje Macau em Novembro de 2013 

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