i. Nesta página, escreve-se sobre música e o
resto, esses interlúdios entre discos. Por vezes, os intervalos que separam os
sons são feitos de silêncio. Quando não há tanta sorte, o resto é ruído.
ii. Na última sexta-feira, em Berlim, o
jornalista angolano Rafael Marques recebeu o “Integrity Award”, prémio
atribuído pela Transparency International. A organização que promove o combate
à corrupção em todo o mundo justifica a distinção com o “trabalho incansável e
corajoso na investigação e denúncia de casos de corrupção em Angola”. Rafael
Marques é um herói. Por causa do que ousou escrever esteve preso várias vezes.
A primeira foi em 1999. Rafael recorda-se bem desse dia em que os verdugos do
regime foram a sua casa: “Tinha sete armas apontadas contra mim, inclusive uma
pistola nas têmporas”, conta à Deutsche Welle. Contra o jornalista correm
actualmente 11 queixas-crime apresentadas pelos que ele denunciou como
corruptos. Rafael Marques não treme: “Não tenho medo desses generais porque
estou a provar que eles são tão falíveis quanto os outros cidadãos e que terão
que responder, tarde ou cedo, pelos seus crimes. Hoje sou eu a responder, mas
amanhã serão eles”. Na hora de receber o prémio, Rafael Marques dedicou-o ao
compatriota Nito Alves, de 17 anos, detido no dia 12 de Setembro (mandado
aguardar julgamento em liberdade, no passado fim-de-semana) por imprimir
T-shirts com a fotografia de José Eduardo dos Santos e as palavras “ditador” e
“nojento”. Outro vencedor do “Integrity Award” deste ano: o jornalista chinês Luo
Changping, “pela sua coragem ao denunciar a corrupção de um alto oficial do
governo chinês”, que, em consequência, veio a ser expulso do Partido Comunista.
Diz a Transparency International: “Os dois vencedores representam tudo aquilo
por que o nosso movimento global luta, nos nossos esforços para pôr um fim aos
abusos de poder, negócios escuros e subornos”. É difícil imaginar uma luta mais
desigual.
iii. O discurso político, mas também a sua
prática, raramente estão de acordo com a realidade, vivendo antes num universo
paralelo distante e dissonante. Cada vez mais desafinada a banda, por todo o
lado, as pessoas fartaram-se dos políticos que têm e estão ansiosas de ver
outros nos seus (deles, políticos) lugares. A ansiedade que todos encurrala
entre o medo e a expectativa cedo se transforma na depressão. Segue-se o
desespero. É a explicação mais benevolente que encontro para a elevação súbita
de Russell Brand a arauto da próxima revolução. Que propõe o multimilionário
apresentador/comediante/actor e consumidor de mais laca do que a rainha de
Inglaterra? Não votem. Claro que a estrela de “Get Him to the Greek” elabora
com prosápia. Russell é um “profissional da comunicação”, especialista em
“dizer coisas” com segurança, rapidez e gravidade. Gil Scott-Heron não estava
armado em profeta quando disse que “the revolution will not be televised”.
Estava a implorar.
iv. Muito mal terá andado a Igreja nos últimos
dois mil anos para o mundo se espantar com um Papa que se comporta como um
católico. Francisco dispensa o ouro e o luxo do Vaticano, defende os mais
pobres e os marginalizados, lava os pés de prisioneiros, diz abertamente que
nem ele pode julgar os outros, homossexuais ou divorciados, e beija doentes
desfigurados. Por uma vez, que “humano, demasiado humano” seja uma virtude.
v. Se fosse vivo, Albert Camus teria feito 100
anos no passado dia 7. Parece que em França (onde passou a maior parte da vida)
e na Argélia (onde nasceu), pouca atenção foi prestada à efeméride. Ignomínia.
Se há pensamento que se mantém à prova do tempo é o do autor de “L’Étranger”.
Eis Camus em discurso directo, quando recebeu o Nobel da Literatura, em 1958:
“Indubitavelmente, cada geração acredita estar destinada a reformar o mundo. A
minha sabe que não o fará, mas a sua missão é talvez de maior importância.
Consiste em impedir que o mundo se destrua. Herdeira de uma história corrompida
em que se misturam revoluções falhadas, tecnologias enlouquecidas, deuses
mortos e ideologias gastas; em que os poderes medíocres, que tudo conseguem
destruir, não sabem como convencer; em que a inteligência se humilhou para se
colocar ao serviço do ódio e da opressão, esta geração, partindo das suas
amargas inquietudes, teve que restaurar um módico do que constitui a dignidade
de viver e de morrer.” Há coisas que nunca mudam. “É preciso imaginar Sísifo
feliz”. Se não, resta-nos o quê?
vi. “Quinhentos Poemas Chineses”, antologia
tornada possível pela editora Livros do Meio e pela Casa de Portugal em Macau,
é a devida comemoração de um milagre que dura há cinco séculos – a
sobrevivência de uma comunidade oriunda de longe no seio de um império milenar.
Não escrevo “milagre” por acaso. Nesta história não falta de inexplicável.
Apesar de termos sido pioneiros no estabelecimento de relações entre povos
europeus e a China, mantivemos quase intacto ao longo dos tempos um profundo
desconhecimento – basta lembrar, por exemplo, que não há uma sinologia
portuguesa. Contudo, a ignorância, sempre atrevida e muitas vezes mútua, não
resultou em guerra. Os conflitos que ao longo dos tempos foram surgindo nunca
abalaram, decisivamente, a paz, mas também é verdade que “harmonia” não é a
palavra que melhor descreve uma convivência suportada nos limites de um
território exíguo. Os confins sempre foram apertados, mas ao invés de nos
aproximarem, terão sido motivo para nos mantermos apartados e fixados em
horizontes diferentes, imaginando, talvez, uma outra realidade. Macau é uma
ideia. Tem sido. Quimérica. E também aqui nos dividimos. Já não entre
imperadores e reis ou mandarins e generais, mas simplesmente entre os que
gostam desta terra, respeitando-a por aquilo que foi e é, e os outros.
Sem comentários:
Enviar um comentário