sábado, 8 de agosto de 2015

E o resto é ruído

i. Nesta página, escreve-se sobre música e o resto, esses interlúdios entre discos. Por vezes, os intervalos que separam os sons são feitos de silêncio. Quando não há tanta sorte, o resto é ruído.

ii. Na última sexta-feira, em Berlim, o jornalista angolano Rafael Marques recebeu o “Integrity Award”, prémio atribuído pela Transparency International. A organização que promove o combate à corrupção em todo o mundo justifica a distinção com o “trabalho incansável e corajoso na investigação e denúncia de casos de corrupção em Angola”. Rafael Marques é um herói. Por causa do que ousou escrever esteve preso várias vezes. A primeira foi em 1999. Rafael recorda-se bem desse dia em que os verdugos do regime foram a sua casa: “Tinha sete armas apontadas contra mim, inclusive uma pistola nas têmporas”, conta à Deutsche Welle. Contra o jornalista correm actualmente 11 queixas-crime apresentadas pelos que ele denunciou como corruptos. Rafael Marques não treme: “Não tenho medo desses generais porque estou a provar que eles são tão falíveis quanto os outros cidadãos e que terão que responder, tarde ou cedo, pelos seus crimes. Hoje sou eu a responder, mas amanhã serão eles”. Na hora de receber o prémio, Rafael Marques dedicou-o ao compatriota Nito Alves, de 17 anos, detido no dia 12 de Setembro (mandado aguardar julgamento em liberdade, no passado fim-de-semana) por imprimir T-shirts com a fotografia de José Eduardo dos Santos e as palavras “ditador” e “nojento”. Outro vencedor do “Integrity Award” deste ano: o jornalista chinês Luo Changping, “pela sua coragem ao denunciar a corrupção de um alto oficial do governo chinês”, que, em consequência, veio a ser expulso do Partido Comunista. Diz a Transparency International: “Os dois vencedores representam tudo aquilo por que o nosso movimento global luta, nos nossos esforços para pôr um fim aos abusos de poder, negócios escuros e subornos”. É difícil imaginar uma luta mais desigual.

iii. O discurso político, mas também a sua prática, raramente estão de acordo com a realidade, vivendo antes num universo paralelo distante e dissonante. Cada vez mais desafinada a banda, por todo o lado, as pessoas fartaram-se dos políticos que têm e estão ansiosas de ver outros nos seus (deles, políticos) lugares. A ansiedade que todos encurrala entre o medo e a expectativa cedo se transforma na depressão. Segue-se o desespero. É a explicação mais benevolente que encontro para a elevação súbita de Russell Brand a arauto da próxima revolução. Que propõe o multimilionário apresentador/comediante/actor e consumidor de mais laca do que a rainha de Inglaterra? Não votem. Claro que a estrela de “Get Him to the Greek” elabora com prosápia. Russell é um “profissional da comunicação”, especialista em “dizer coisas” com segurança, rapidez e gravidade. Gil Scott-Heron não estava armado em profeta quando disse que “the revolution will not be televised”. Estava a implorar.

iv. Muito mal terá andado a Igreja nos últimos dois mil anos para o mundo se espantar com um Papa que se comporta como um católico. Francisco dispensa o ouro e o luxo do Vaticano, defende os mais pobres e os marginalizados, lava os pés de prisioneiros, diz abertamente que nem ele pode julgar os outros, homossexuais ou divorciados, e beija doentes desfigurados. Por uma vez, que “humano, demasiado humano” seja uma virtude.

v. Se fosse vivo, Albert Camus teria feito 100 anos no passado dia 7. Parece que em França (onde passou a maior parte da vida) e na Argélia (onde nasceu), pouca atenção foi prestada à efeméride. Ignomínia. Se há pensamento que se mantém à prova do tempo é o do autor de “L’Étranger”. Eis Camus em discurso directo, quando recebeu o Nobel da Literatura, em 1958: “Indubitavelmente, cada geração acredita estar destinada a reformar o mundo. A minha sabe que não o fará, mas a sua missão é talvez de maior importância. Consiste em impedir que o mundo se destrua. Herdeira de uma história corrompida em que se misturam revoluções falhadas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias gastas; em que os poderes medíocres, que tudo conseguem destruir, não sabem como convencer; em que a inteligência se humilhou para se colocar ao serviço do ódio e da opressão, esta geração, partindo das suas amargas inquietudes, teve que restaurar um módico do que constitui a dignidade de viver e de morrer.” Há coisas que nunca mudam. “É preciso imaginar Sísifo feliz”. Se não, resta-nos o quê?

vi. “Quinhentos Poemas Chineses”, antologia tornada possível pela editora Livros do Meio e pela Casa de Portugal em Macau, é a devida comemoração de um milagre que dura há cinco séculos – a sobrevivência de uma comunidade oriunda de longe no seio de um império milenar. Não escrevo “milagre” por acaso. Nesta história não falta de inexplicável. Apesar de termos sido pioneiros no estabelecimento de relações entre povos europeus e a China, mantivemos quase intacto ao longo dos tempos um profundo desconhecimento – basta lembrar, por exemplo, que não há uma sinologia portuguesa. Contudo, a ignorância, sempre atrevida e muitas vezes mútua, não resultou em guerra. Os conflitos que ao longo dos tempos foram surgindo nunca abalaram, decisivamente, a paz, mas também é verdade que “harmonia” não é a palavra que melhor descreve uma convivência suportada nos limites de um território exíguo. Os confins sempre foram apertados, mas ao invés de nos aproximarem, terão sido motivo para nos mantermos apartados e fixados em horizontes diferentes, imaginando, talvez, uma outra realidade. Macau é uma ideia. Tem sido. Quimérica. E também aqui nos dividimos. Já não entre imperadores e reis ou mandarins e generais, mas simplesmente entre os que gostam desta terra, respeitando-a por aquilo que foi e é, e os outros.


Publicado no jornal Hoje Macau em Novembro de 2013

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