sábado, 8 de agosto de 2015

Domo arigato


Repetidamente, “I think of you”. Um japonês sentado a um piano de cauda. Recordo-me de uma fotografia dele. Aparece com ar de yakuza arrependido a gozar um exílio dourado, debaixo de um chapéu branco de fita preta, a aba a encobrir a face que sorri. Segura na mão direita um copo de vinho tinto. Brande.

Agora, sem ele o saber, faz-me companhia. Toca poucas e certas notas. Demora-se. Toca, como quem diz “I think of you”. Só como quem diz “penso em ti”. Só “penso em ti”. Repetidamente.

Há músicas que podiam durar para sempre. Estender-se-iam independentemente da nossa existência passageira e atravessariam épocas, costumes e mares. A própria rotação do planeta serviria de força motriz de um imenso gira discos cósmico. A música perpetuar-se-ia no azul infinito do espaço inabitado. Antes e depois do tempo, fora do mundo.

Agora que as noite de veraneio vieram para ficar, longas, cobertas por halos tremeluzentes onde se pressentem as luzes da cidade como um fantasma, há um disco que serve de bálsamo, que apazigua o calor que afronta e os fantasmas que desassossegam.

“Nekono Topia Nekono Mania” é o quarto disco de Seigen Ono. Compositor, músico, engenheiro de gravação e remasterização. Foi nestas qualidades que trabalhou com Ryuichi Sakamoto, Joe Jackson, The Lounge Lizards, King Crimson, Golden Palominos, David Sylvian e outros de uma a lista infindável.

Em 1984, lançou o primeiro disco, “Seigen”, a que se seguiu, quatro anos depois, “The Green Chinese Table”. No ano seguinte editou os dois volumes de “Comme des Garçons”, compilando música encomendada pela casa de moda japonesa. Em 1990, depois de ter juntado um grupo de amigos, deu ao mundo o disco que traz-me a estas páginas.

“Nekono Topia Nekono Mania” inspira-se, em iguais medidas, no torpor hipnótico e sedutor da música brasileira imaginada por Jobim e Gilberto, no Jazz “impossibly cool” e “avant-garde” da “downtown” nova-iorquina, na “new age” de Eno e Budd, e, claro, nas noites de verão, intermináveis, nos sussurros entre amigos e amantes, numa roda de conversa em torno da mesa, nas luzes que se apagam, na lua e nas estrelas.

A primeira parte do disco é marcada pelo saxofone de John Zorn, aqui domado como nunca o ouvimos, “romântico até”, como nota surpreendido o excelente All Music, indeciso em que categoria arrumar “Nekono Topia Nekono Mania”. Não interessa onde.

À oitava música, “1989”, é introduzida, em jeito de interlúdio, de ponte, uma toada ambiental em jeito de “suspense”. A inquietação logo se desvanece quando ouvimos as primeiras notas do tema seguinte: “I Think of You”. A mesma música, numa versão mais despojada, aparecerá mais à frente para fechar o disco.

Trata-se de um tema ao piano. No All Music, diz-se desta música que “parece uma obra perdida e intimista de Samuel Barber”. O compositor norte-americano, autor do belíssimo “Adagio for Strings”, não desdenharia ter arranjado “I Think of You”, digo eu.

Por muitas vezes desejei que certas músicas tivessem o dobro, o triplo e por aí fora da duração que realmente têm. Esta é aquela que encabeça a lista dessas músicas.

Nietzsche terá dito que “sem a música, a vida seria um erro”. Certo. No entanto, sem certas músicas, a vida seria uma tragédia. Ainda pior, portanto. Alegremo-nos.

“Nekono Topia Nekono Mania” 
Seigen Ono
Crammed Discs/Made to Measure, 1990

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 15 de Junho de 2012
  

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