1986, por decisão das Nações Unidas, foi
considerado o Ano Internacional da Paz. O desarmamento nuclear era a grande
questão que dominava a actualidade política e, por todo o mundo, o pacifismo
foi promovido com marchas e exposições, conferências e concertos. A China não
foi excepção.
Em Maio desse ano, o Ginásio dos
Trabalhadores, em Pequim, acolheu um concerto comemorativo do Ano Internacional
da Paz, no qual participaram uma centena de artistas. A certa altura, o longo
desfile de baladas românticas melosas e canções das colectividades
revolucionárias foi interrompido quando subiu ao palco um homem vestido como
mandarim, com uma guitarra pendurada nas costas. Fez-se silêncio e ouviram-se
os primeiros acordes de “Nothing To My Name”.
A letra estava escrita
na primeira pessoa de um despojado: “I want to give you my hope / I want to
help make you free / But you always laugh at me / For I have nothing to my
name”. A canção durou 10 minutos. No final, o homem “sem
nada no seu nome”, Cui Jian, foi aplaudido de pé pela audiência que
testemunhava o nascimento da primeira estrela de rock chinesa e também do hino
de uma geração que, poucos anos mais tarde, haveria de ser entoado pelos
milhares de estudantes que se juntaram na Praça de Tiananmen para pedir
reformas políticas.
Filho de pais de etnia coreana com forte
ligação à música, Cui Jiang (diz-se “sway-jen”) aprendeu a tocar trompete aos
14 anos de idade. Seis anos depois, entrou para a Orquestra Filarmónica de
Pequim.
Nesta altura, Cui começa a interessar-se pela
música que se fazia no Ocidente e que ouvia nas cassetes que os estudantes
estrangeiros em Pequim e turistas lhe faziam chegar. Cedo formou a sua primeira
banda de rock, Seven-Ply Board, com quem tocava “covers” dos artistas que
gostava: Simon and Garfunkel, John Denver, Rolling Stones, The Clash, Talking
Heads, The Beatles. Para os dirigentes da Orquestra Filarmónica de Pequim, zelosos
seguidores da cartilha comunista, as influências ocidentais corrompiam os
valores chineses, pelo que Cui Jian foi convidado a abandonar o seu lugar de
trompetista. O rock chamava.
Em 1987, Cui Jian edita o seu primeiro disco,
“Rock and Roll on The New Long March”. O título acabaria por revelar-se
certeiro no que ao género de música dizia respeito, mas também adivinhava com
exactidão o que seriam os anos seguintes da carreira e vida de Cui Jiang: uma
longa odisseia.
Em 1989, em Abril, dezenas de milhares de
estudantes juntaram-se na Praça de Tiananmen. O que começou por ser um grande
encontro de homenagem e luto pela morte de Hu Yaobang, um dos políticos em quem
os estudantes depositavam grandes esperanças de reformas, tornar-se-ia num
imenso movimento de protesto.
Em Maio, Cui Jiang actuou na Praça de
Tiananmen. O cantor recorda que se vivia o ambiente de “uma grande festa, não
havia medo”. “Nothing To My Name” foi um dos temas que se ouviram, não só da
boca de Cui, mas de muitos outros que resistiram na Praça Celestial até que por
ali irrompessem os tanques e os soldados, no fatal 4 de Junho. Depois desse
dia, as coisas nunca mais foram as mesmas.
Logo no ano seguinte ao massacre que matou um
número, ainda hoje, desconhecido de pessoas, em 1990, Cui Jiang começou a
actuar nos concertos vestido com roupas que um pobre camponês usaria e com os
olhos vendados por um pedaço de tecido vermelho. O cerco das autoridades
apertou.
Cui Jiang foi banido dos grandes palcos
chineses e os alinhamentos dos concertos sujeitos a censura; no entanto, nem a
criatividade, nem a veia contestatária se extinguiram. Cui continuou a “longa
marcha” e a gravar discos.
O segundo álbum, sucessor do histórico “Rock
and Roll on The New Long March”, foi “Solution”, lançado em 1991. Três anos
depois, edita “Balls Under the Red Flag” (título que em chinês é depreciativo
q.b. para as autoridades).
Em 1998, Cui chama ao seu quarto disco “The
Power of the Powerless”, onde continua a combinar instrumentos chineses
tradicionais e linguagens do rock, a que acrescenta influências dos “rappers”
norte-americanos com consciência social Public Enemy. Os elementos electrónicos
e as referências oriundas do hip-hop regressam no quinto e último, até à data,
disco de originais de Cui Jiang – “Show You Colour”, de 2005.
Em entrevista concedida ao jornal britânico
The Independent, em 2005, Cui Jian falou sobre o que terá significado a canção “Nothing
To My Name” para as pessoas que a ouviram, pela primeira vez, no Ginásio dos
Trabalhadores: “Naquela altura, as pessoas estava acostumadas a ouvir antigas
canções revolucionárias e nada mais. Quando me ouviram cantar sobre aquilo que
eu queria enquanto indivíduo, isso captou a sua atenção. Quando cantavam
‘Nothing To My Name’, era como se estivessem a exprimir o que sentiam".
Hoje, numa China onde uma boa parte dos jovens
parecem mais dispostos a lutar por um iPhone do que pela liberdade, a música de
Cui Jian continua a fazer tanto sentido como há 25 anos. Mas, apesar da “nova
longa marcha” estar ainda longe de terminar, quem, ainda, segue o cortejo e
entoa as palavras em nome do pai do rock chinês?
Cui Jian
1 de Novembro, 20:00
Praia de Hac Sa
Entrada Livre
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 28 de Outubro de 2011
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