sábado, 8 de agosto de 2015

Em nome do pai do rock chinês


1986, por decisão das Nações Unidas, foi considerado o Ano Internacional da Paz. O desarmamento nuclear era a grande questão que dominava a actualidade política e, por todo o mundo, o pacifismo foi promovido com marchas e exposições, conferências e concertos. A China não foi excepção.

Em Maio desse ano, o Ginásio dos Trabalhadores, em Pequim, acolheu um concerto comemorativo do Ano Internacional da Paz, no qual participaram uma centena de artistas. A certa altura, o longo desfile de baladas românticas melosas e canções das colectividades revolucionárias foi interrompido quando subiu ao palco um homem vestido como mandarim, com uma guitarra pendurada nas costas. Fez-se silêncio e ouviram-se os primeiros acordes de “Nothing To My Name”.

A letra estava escrita na primeira pessoa de um despojado: “I want to give you my hope / I want to help make you free / But you always laugh at me / For I have nothing to my name”. A canção durou 10 minutos. No final, o homem “sem nada no seu nome”, Cui Jian, foi aplaudido de pé pela audiência que testemunhava o nascimento da primeira estrela de rock chinesa e também do hino de uma geração que, poucos anos mais tarde, haveria de ser entoado pelos milhares de estudantes que se juntaram na Praça de Tiananmen para pedir reformas políticas.

Filho de pais de etnia coreana com forte ligação à música, Cui Jiang (diz-se “sway-jen”) aprendeu a tocar trompete aos 14 anos de idade. Seis anos depois, entrou para a Orquestra Filarmónica de Pequim.

Nesta altura, Cui começa a interessar-se pela música que se fazia no Ocidente e que ouvia nas cassetes que os estudantes estrangeiros em Pequim e turistas lhe faziam chegar. Cedo formou a sua primeira banda de rock, Seven-Ply Board, com quem tocava “covers” dos artistas que gostava: Simon and Garfunkel, John Denver, Rolling Stones, The Clash, Talking Heads, The Beatles. Para os dirigentes da Orquestra Filarmónica de Pequim, zelosos seguidores da cartilha comunista, as influências ocidentais corrompiam os valores chineses, pelo que Cui Jian foi convidado a abandonar o seu lugar de trompetista. O rock chamava.

Em 1987, Cui Jian edita o seu primeiro disco, “Rock and Roll on The New Long March”. O título acabaria por revelar-se certeiro no que ao género de música dizia respeito, mas também adivinhava com exactidão o que seriam os anos seguintes da carreira e vida de Cui Jiang: uma longa odisseia.
Em 1989, em Abril, dezenas de milhares de estudantes juntaram-se na Praça de Tiananmen. O que começou por ser um grande encontro de homenagem e luto pela morte de Hu Yaobang, um dos políticos em quem os estudantes depositavam grandes esperanças de reformas, tornar-se-ia num imenso movimento de protesto.

Em Maio, Cui Jiang actuou na Praça de Tiananmen. O cantor recorda que se vivia o ambiente de “uma grande festa, não havia medo”. “Nothing To My Name” foi um dos temas que se ouviram, não só da boca de Cui, mas de muitos outros que resistiram na Praça Celestial até que por ali irrompessem os tanques e os soldados, no fatal 4 de Junho. Depois desse dia, as coisas nunca mais foram as mesmas.

Logo no ano seguinte ao massacre que matou um número, ainda hoje, desconhecido de pessoas, em 1990, Cui Jiang começou a actuar nos concertos vestido com roupas que um pobre camponês usaria e com os olhos vendados por um pedaço de tecido vermelho. O cerco das autoridades apertou.
Cui Jiang foi banido dos grandes palcos chineses e os alinhamentos dos concertos sujeitos a censura; no entanto, nem a criatividade, nem a veia contestatária se extinguiram. Cui continuou a “longa marcha” e a gravar discos.

O segundo álbum, sucessor do histórico “Rock and Roll on The New Long March”, foi “Solution”, lançado em 1991. Três anos depois, edita “Balls Under the Red Flag” (título que em chinês é depreciativo q.b. para as autoridades).

Em 1998, Cui chama ao seu quarto disco “The Power of the Powerless”, onde continua a combinar instrumentos chineses tradicionais e linguagens do rock, a que acrescenta influências dos “rappers” norte-americanos com consciência social Public Enemy. Os elementos electrónicos e as referências oriundas do hip-hop regressam no quinto e último, até à data, disco de originais de Cui Jiang – “Show You Colour”, de 2005.

Em entrevista concedida ao jornal britânico The Independent, em 2005, Cui Jian falou sobre o que terá significado a canção “Nothing To My Name” para as pessoas que a ouviram, pela primeira vez, no Ginásio dos Trabalhadores: “Naquela altura, as pessoas estava acostumadas a ouvir antigas canções revolucionárias e nada mais. Quando me ouviram cantar sobre aquilo que eu queria enquanto indivíduo, isso captou a sua atenção. Quando cantavam ‘Nothing To My Name’, era como se estivessem a exprimir o que sentiam".

Hoje, numa China onde uma boa parte dos jovens parecem mais dispostos a lutar por um iPhone do que pela liberdade, a música de Cui Jian continua a fazer tanto sentido como há 25 anos. Mas, apesar da “nova longa marcha” estar ainda longe de terminar, quem, ainda, segue o cortejo e entoa as palavras em nome do pai do rock chinês?

Cui Jian
1 de Novembro, 20:00
Praia de Hac Sa

Entrada Livre

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 28 de Outubro de 2011

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