sábado, 8 de agosto de 2015

Revolução cultural


21 de Outubro de 1981. No mês de todas as revoluções, Pequim começava uma noite de quarta-feira banhada por sons e luzes que a capital do império do meio nunca antes imaginara ouvir ou ver.
Passam hoje precisamente 30 anos desde que, pela primeira vez, um músico ocidental actuou na China comunista. A honra coube ao francês e pioneiro da música electrónica ambiental Jean Michel Jarre.

Em cima do acontecimento, a Reuters difundia um telex logo a seguir ao histórico espectáculo. “A China viu hoje o seu primeiro concerto de rock electrónico”, começava a notícia da agência que descrevia a audiência “desorientada” e Jean Michel Jarre “encantado” por ter tocado em Pequim perante 15 mil espectadores que “aplaudiram ocasionalmente”, mostrando mais interesse no aparato visual dos inúmeros lasers do que na música estranhamente hipnótica.

No curto despacho da Reuters, referência ainda para a debandada de quase metade da audiência que encheu o Ginásio dos Trabalhadores. Não porque não estivessem a gostar do concerto, mas porque os autocarros de Pequim terminavam as carreiras às dez da noite, ou seja, antes do final do espectáculo que começou às oito, tendo durado duas horas e 40 minutos.

Quase três horas que foram antecedidas por um longo processo de negociação e preparação que se tornou mais fácil quando, ainda em 1981, a embaixada britânica na capital chinesa ofereceu à Rádio Pequim dois discos de Jean Michel Jarre, “Oxygene” e “Équinoxe”, que tornar-se-iam, assim, nas primeiras peças de música ocidental tocadas no éter comunista. O convite para que Jarre tocasse ao vivo na China veio pouco tempo depois.

O compositor, acompanhado de pessoal da sua editora (Disques Dreyfus), fez várias visitas preparatórias a Pequim, mas nem por isso a noite da estreia ficou livre de imprevistos.

A imensa parafernália tecnológica de Jean Michel Jarre era, afinal, demasiado potente para a instalação eléctrica do Ginásio dos Trabalhadores. Valeu o pragmatismo: conta-se que os oficiais chineses resolveram a questão cortando a electricidade na vizinhança do estádio enquanto o concerto decorria.

Os efeitos especiais de luz e som, os incontáveis sintetizadores, osciladores e processadores eram (e são) a imagem de marca do futurista Jean Michel Jarre que, na China, utilizou pela primeira vez em palco um instrumento que, ainda hoje, é “exótico” – a harpa de laser, que consiste numa série de feixes de luz que reproduzem sons quando bloqueados. Mais um entre os muitos motivos de admiração para o público chinês.

Quando chegou à China, o francês, filho do compositor Maurice Jarre, tinha editado três discos que se vendiam aos milhões em todo o mundo.

Para a fama planetária contribuía ainda a relação com Charlotte Rampling, a actriz inglesa que acompanhou o então marido nesta aventura chinesa.

São célebres as imagens do mediático casal em improvisadas sessões de fotografia nas ruas de Pequim: duas figuras coloridas em evidente contraste com um fundo monótono, demasiado cinzento.
Tinha sido há apenas 3 anos que a China começara o processo de reformas económicas que paulatinamente iam abrindo o país ao exterior.

Depois do restabelecimento das relações diplomáticas com os Estados Unidos, depois da importação da Coca-Cola... a música electrónica de Jean Michel Jarre.

Ao todo, o francês deu cinco concertos – dois em Pequim e três em Xangai, onde o músico recorda um público mais efusivo do que na capital.

Transmissões na rádio e na televisão chinesas levaram os sons futuristas de Jean Michel Jarre a 500 milhões de pessoas em toda a República Popular.

Em 1982, um duplo LP foi lançado com o nome “Concerts in China”. Tratava-se do registo de um momento histórico para memória futura que chegou a número um no “top” de vendas português.
“Concerts In China” é um dos pontos altos da electrónica progressiva e ambiental e também um dos primeiros exemplos de fusão de sonoridades ocidentais e orientais. Foi isso que Jean Michel Jarre fez, por exemplo, em “Jonques de Pecheurs au Crepuscule”, um tema tradicional chinês a que o francês juntou novos travos sintéticos e diferentes arranjos interpretados pela Orquestra Sinfónica do Conservatório de Pequim. Outros temas, como “Nuit a Shangai” ou “Orient Express”, reflectem inspiração sínica.

Em 1982, estreou na estação televisiva britânica ITV o documentário “Jean-Michel Jarre - China Concerts 1981”, que apenas em 1989 foi editado em vídeo e, até hoje, permanece sem edição oficial em DVD. As imagens surgem como o complemento óbvio à audição do disco, e ajudam a dar forma ao imaginário que a música sugere.

No entanto, apesar do som e da imagem, conceber o que a audiência de há 30 anos pensou e sentiu quando ouviu Jean Michel Jarre continua a ser um insondável mistério e um desafio ao mais criativo dos seres.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 21 de Outubro de 2011


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