Evocando, ao mesmo tempo, geologia de culto
divino e música de ídolos pagãos, “Cambodian Rocks” foi o feliz título
escolhido para o disco que inaugurou a recuperação da memória dos gloriosos
anos em que o rock foi rei e senhor no Cambodja.
A história do disco começou num autocarro, no
princípio dos anos 1990, a caminho dos templos de Angkor Wat. Um dos turistas a
bordo, Paul Wheeler, foi apanhado pela música que o condutor ouvia em velhas
cassetes. Havia reminiscências de tudo aquilo que, desde os anos 1950 até aos
anos 1970, tinha saído dos Estados Unidos, do rock’n’roll ao acid-rock,
passando pelo rythm & blues e pelo surf rock. Sob um fundo instrumental
assente nos ritmos 4/4 encadeados com os acordes simples e envolventes dos
blues, impondo um “groove” tentador, sobressaíam vozes cantando em “khmer”, com
as características vogais abertas, muito abertas, por vezes no tom alucinado de
Screamin' Jay Hawkins e em concerto de harmonioso psicadelismo com a música
electrizante.
Assim que se apeou, Wheeler procurou uma banca
que vendesse cassetes, disposto a cantarolar o que tinha ouvido na viagem com a
esperança de que lhe indicassem quais as fitas que deveria comprar. Assim
aconteceu. Os amigos cambojanos a quem mostrou as cassetes logo lhe disseram
que tinha em mãos uma colecção daquilo que, no Cambodja, foi conhecido, em
tempos, como a “música de dança” dos clubes nocturnos e das festas que se
faziam nas ruas das grandes cidades e em terraços nos topos dos edifícios
chiques.
Wheeler, norte-americano que trabalhara no
Japão e que, antes do regresso definitivo aos Estados Unidos decidiu explorar o
sudeste asiático, tinha sido, nos finais de 1970, baixista numa banda punk.
Quando chegou a Nova Iorque, não perdeu tempo e mostrou a dois amigos a música
que o seduziu a caminho de Angkor Wat. Paul Major e Mike Ascherman, que geriam
a pequena editora Parallel World, fizeram das cassetes de Paul Wheeler o disco
“Cambodian Rocks”.
Quando a compilação foi editada, em 1996, não
havia qualquer informação quanto ao nome dos artistas ou das músicas, muito
menos sobre a origem ou as datas. Quatro anos mais tarde, a Parallel World
lançou uma nova edição das cassetes cambojanas, desta feita acrescentando uma
mão cheia de músicas, mas ainda sem qualquer informação que orientasse a escuta
numa determinada direcção. A palavra e a música, no entanto, foram sendo
espalhadas e o interesse sobre os cambojanos que mais se pareceram com Janis
Joplin, Jimi Hendrix e Pete Townshend não parou de crescer.
Hoje, há pelo menos uma dúzia destas
compilações que reavivam a música pop cambojana dos anos 1960 e 1970. São,
também, mais abundantes as informações sobre os artistas e as canções. A
excelente editora “Sublime Frequencies”, que dá particular destaque ao sudeste
asiático, tem sido incansável no esforço de deliciar os melómanos mais
exigentes e de preferências exóticas. Uma das mais recentes compilações do
“rock khmer”, editada em 2010, é “Electric Cambodia: 14 Rare Gems from
Cambodia's Past”, da responsabilidade dos Dengue Fever, a banda de
norte-americanos de Los Angeles obcecados pelo reino do sudeste asiático.
Todos estes discos trazem à superfície novas
pepitas que reflectem luz sobre uma música que, apesar de lembrar tempos
áureos, pertence, na verdade, a uma história trágica. A época dourada do
pop-rock khmer passou como um fogacho: luminoso, mas fugaz.
Em 1975, os Khmer Rouge, os “vermelhos”,
comunistas, liderados por Pol Pot, tomaram o Cambodja, então vulnerável e em
ambiente de instabilidade devido à guerra que os norte-americanos levaram ao
vizinho Vietname. Em quatro anos, os Khmer Rouge foram os responsáveis pela
morte de quase dois milhões de cambojanos – um quarto da população –, vítimas
da tortura, de execuções em massa e da fome.
No estado de terror, as influências ocidentais
eram consideradas um mal que era necessário extirpar. Praticamente todos os
artistas que ouvimos nas compilações sucedâneas de “Cambodian Rocks” morreram
neste período. Poucos foram os músicos, os artistas e os intelectuais que
sobreviveram para contar a sua história.
Alguns dos que escaparam são alvo da atenção do realizador John Pirozzi, que espera lançar, este ano, o documentário “Don’t Think I’ve Forgotten – Cambodia’s Lost Rock and Roll”. O filme (www.cambodianrock.com) apresenta um país ainda assombrado pelo espectro da guerra e do genocídio, mas traz de volta uma história que, felizmente, ainda não foi completamente devorada pela tragédia do esquecimento.
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