A frase “a China mudou muito” é daquelas que,
hoje, qualquer pessoa minimamente familiarizada com o Mundo e com essa coisa
chamada “actualidade” está habilitada a dizer com toda a propriedade, ainda que
nunca tenha posto pé na República Popular. É simplesmente evidente que a China
mudou porque essa transformação foi tal que os seus efeitos chegaram a cada
esquina de cada rua, por mais longínqua a distância.
No entanto, quando o meu interlocutor diz que
“a China mudou muito”, na verdade, refere-se a algo que quase todos
desconhecem.
O homem de copo de vinho tinto português na
mão está a falar da cena “noise” chinesa, uma excentricidade que ele, Zbigniew
Karkowski, polaco residente no Japão, acompanhou desde o princípio.
A proximidade com o movimento alternativo
chinês trouxe Zbigniew a Macau, pela primeira vez, em 2005, para uma actuação
no Armazém do Boi onde, pelas suas contas, estiveram quatro pessoas. Sete anos
depois, o artista polaco que é considerado um dos mais influentes compositores
actuais de música electrónica regressou ao território para uma actuação breve,
mas poderosa, na Live Music Assocation, numa noite (13 de Janeiro) dedicada a
essa expressão radical, de extremos, despudoradamente chamada “noise”, que
contou com mais duas actuações: e:ch, de Macau, e Sin:Ned, de Hong Kong.
Antes de subir ao palco para testar os limites
auditivos da plateia bem composta de curiosos e indefectíveis, Zbigniew
Karkowski recordou os tempos “excitantes” da primeira década dos anos 2000 na
China, quando “havia uma sede enorme de tudo”.
Foi este o contexto em que surgiu o “noise” e
outras músicas experimentais e alternativas, de resto bem documentado na
compilação “An Anthology of Chinese Experimental Music”, já mencionada nestas
páginas, e no ensaio que a acompanha, “The Sound of the Underground,
Experimental and Non-Academic Musics in China”, da autoria de Yan Jun e
Zbigniew Karkowski.
Agora, “a China mudou muito”. A tal ponto que
Zbigniew deixou de reconhecer até a própria cena musical que ajudou a nascer.
“Fui convidado recentemente para tocar em Guangzhou, Foshan e Shenzhen. Nem
sequer queria ir. Estive lá no ano passado. Muito poucas pessoas aparecem nos
concertos. Os bares são uma espécie de poisos de ‘yuppies’, com os donos
interessados apenas em fazer dinheiro. Tudo muito bonitinho e cervejas belgas
importadas. Já não gosto”.
Hoje, lamenta, não restam muitos dos
companheiros de aventuras sónicas do início, pois uma boa parte desertou do
“noise” e das artes para enveredar por uma vida que nem sabe descrever. “Sempre
fiz isto e não saberia fazer outra coisa”, revela entre um trago e uma passa do
cigarro.
Mas a experiência, no caso de Zbigniew
Karkowski, não equivale exactamente a sabedoria. “Eu não sei o que faço”,
confessa, quando lhe pergunto sobre a evolução do seu trabalho e a influência
das várias geografias, particularmente a chinesa, na sua obra. Sabe apenas que
faz o que faz pelo prazer e pela experimentação. Não lhe interessam objectivos
ou finalidades, nem tão pouco justificações. O que é importante é “não parar”.
Convém também, claro, nunca ceder, ou seja, não abandonar os princípios a troco
de uma qualquer recompensa.
Na vida deste artista de 55 anos, a questão
fundamental é o tratamento do som. E, ainda que despreze relógios (ou por causa
disso), o tempo – o sentido e a noção de duração. Depois, pormenores técnicos:
manipulação, “feedback”, estática, distorção, volume, acústica, electricidade,
frequência, tudo triturado até que não haja harmonia, melodia, ritmo ou o que
quer que seja senão “noise”, o ponto em que o som se torna impossivelmente
“físico” e nos é infligido como um castigo severo (para os mais sensíveis) ou
como a possibilidade de abstracção última, uma espécie de mergulho no vazio
(para os mais audazes).
Será essa coragem que falta agora aos cada vez
(na sua óptica) mais escassos artistas radicais chineses? Zbigniew diz que não
sabe. Ao fim de poucas perguntas percebo que não há respostas à espera. Mas a
conversa continua.
(continua)
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 18 de Janeiro de 2012
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