sábado, 8 de agosto de 2015

“Graffiti” na Grande Muralha


“Lyrical poetry is out for the time being,
and something that is called rap or hip-hop is in.
 It is still poetry, and we can’t live without it. 
We need language to tell us who we are,
how we feel, what we’re capable of –
to explain the pains and glory of our existence.”

Maya Angelou


É difícil superar a exactidão das palavras da poeta e activista norte-americana Maya Angelou sobre a importância e significado social do Rap e do Hip-Hop. Mais de 30 anos depois destas duas formas de cultura popular terem surgido, depois de vendidos milhões e milhões de discos que tornaram universalmente aceites movimentos nascidos de comunidades isoladas em “ghettos”, continua a ser a “linguagem a dizer-nos quem somos, como nos sentimos e do que somos capazes”. Em suma, é ainda a poesia, da qual derivam o Rap e o Hip-Hop, que nos explica “as dores e a glória da nossa existência”.

Foi no início dos anos 1970, nas ruas do Bronx, em Nova Iorque, que um DJ chamado Kool Herc deu início ao fenómeno que hoje abunda nas ruas de cidades de todo o mundo, já não meramente enquanto “discurso” ou música, mas sobretudo como “estilo de vida”, reflectido em códigos perceptíveis desde o vestuário às atitudes.

A China começou a assistir à propagação do Hip-Hop depois da explosão do Rock nos anos 1980 e 1990. Actualmente, encontramos esta expressão cultural confortavelmente instalada no “mainstream” dos media oficiais chineses, mas também damos conta dela resistindo nas trincheiras que separam as margens alternativas dos circuitos comerciais, onde o Rap (forma de discurso rítimico, lírica, habitualmente estruturada em rimas), ou “shuo chang” (algo como “falar cantar”), continua a cumprir o papel original de “levantar a voz” dos oprimidos pelos poderosos sistemas políticos e económicos.
Não por acaso, na China, um dos primeiros artistas a usar e divulgar a linguagem do Hip-Hop foi Cui Jian, o “pai do rock chinês” e símbolo da geração que encheu a Praça de Tiananmen em 1989. Foi já na segunda metade dos anos 1990 que Cui incorporou na sua música fortes influências dos norte-americanos Public Enemy, grupo lendário que se definia como “the CNN of black America".

Para um número crescente de jovens chineses, o Hip-Hop é, actualmente, a forma privilegiada de expressarem a individualidade que o regime, a família e a escola rejeitam. Esta espécie de “culto da diferença”, apesar de estar longe de ser aprovado pelas autoridades, vai escapando ao radar dos censores remetendo-se à semi-obscuridade dos clubes de Hip-Hop que nasceram como cogumelos por toda a China. Para que a integridade subsista e a sua individualidade se faça ouvir, os jovens “rappers” chineses abdicam de eventuais carreiras lucrativas a cantarolar sobre quão maravilhosa é a vida na República Popular. Ao invés, falam de como a corrupção domina um país que “só é um paraíso para homens velhos e ricos” e onde “bebés morrem depois de beberem leite”, como descreve Wang Li, “rapper” de Dongbei.

No universo cantonense, os LMF (Lazy Mutha Fucka), de Hong Kong, cometeram a proeza de rivalizar com o sucesso do Cantopop, apesar (ou por causa...) da controvérsia que nas suas letras rima com linguagem ofensiva e descrições vívidas da realidade social das “camadas desfavorecidas”, para usar o jargão oficial.

O fenómeno do “Hip-Hop de características chinesas” atraiu, entretanto, a atenção da academia norte-americana. Angela Steele, da Universidade de Stanford, passou uma temporada na China, onde estudou a forma como o Hip-Hop foi apropriado pela juventude local. Nas diversas entrevistas que realizou com “rappers” de Pequim, Xangai ou Urumqi, o sistema de ensino chinês aparece invariavelmente identificado como um elemento de controlo e indiferenciação, algo que os impele à revolta e à expressão de uma identidade própria, de um estilo pessoal que poucos géneros musicais valorizam tanto como o Hip-Hop, a escola de rua que desde o primeiro momento ensinou que a liberdade de ser é algo que também se conquista.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 11 de Novembro de 2011

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