domingo, 9 de agosto de 2015

História sem princípio nem fim

"Santos" e "piratas" povoam a história de Macau. Pelo menos, assim é no livro de Agustina Bessa-Luís passado na cidade que o vigésimo primeiro rei de Portugal dizia ser do Santo Nome de Deus. Como nos bons livros de história, passado e presente confundem-se, às vezes, confundindo-nos. Mas é assim. Muito pouco mudou. Muito pouco muda.

No século XVI, por exemplo, Macau tanto "atraía toda a espécie de viajantes em busca de negócios prósperos e fáceis", como "era também um posto de missão religiosa e onde, em vista da evangelização da China, se aprendia chinês sem correr os riscos da lei de Cantão". "Tal como hoje", somos tentados a dizer após um relance, ainda que exista o pormenor de a pena capital já não ser aplicada no outro lado das Portas do Cerco por se ensinar chinês aos estrangeiros. Noutros tempos, não havia caminho mais directo ao coração dos povos - falar a mesma língua; hoje, talvez continue a não haver, mas mais importante parece ser a linguagem.

Pela história que chega até nós intacta, imutável, e pelas circunstâncias actuais que fazem de Macau a "Região Administrativa Especial patriótica", como classificam os norte-americanos do Departamento de Estado, por oposição à de Hong Kong, onde a política existe como luta e onde há mais do que aqueles que se limitam a ouvir quando Pequim fala, aqui, 500 anos depois, ainda se constroem pontes entre a capital chinesa e o Vaticano. Laboriosa e pacientemente.

A missão parece sempre longe de acabada e pouco menos do que impossível e só podia estar entregue a duas partes tão opostas no desígnio quanto próximas na ambição e perseverança. E na linguagem, acrescente-se, que de uns e de outros podemos dizer que são insondáveis os caminhos que levam a misteriosos fins. Sigamos pelo meio, pela história.

Depois de ter sido responsável pela construção da primeira universidade de estilo ocidental na Ásia, em Macau, a Igreja Católica continua a reservar à Educação um papel central no território, onde é talvez o maior prestador de serviços pedagógicos.

Em 1996, com a transferência de administração à vista e com a esperada perda de privilégios e estatuto de que a Igreja desfrutava nas relações sempre próximas com o Estado português, nasce o Instituto Inter-Universitário de Macau (futura Universidade de São José), criação da Diocese de Macau e da Universidade Católica portuguesa. A construção de um novo campus em terrenos cedidos pelo Governo de Macau, a extensão para Zhuhai e a formação de padres da China eram (e continuam a ser) objectivos.

É desta teia que se desprende um professor de Ciência Política da Universidade de São José, despedido porque se disponibilizava a comentar a actualidade e as incidências da vida pública local na comunicação social?

O reitor da Universidade de São José, Peter Stilwell, teólogo com obra publicada, homem dado à reflexão sobre a questão central do cristianismo - a essência do divino e a sua existência -, habituado aos rigores do pensamento exigidos por disciplinas como a metafísica e a ontologia, achou que um professor da instituição que dirige passa das marcas quando intervém como cidadão.

Nas declarações que fez sobre este caso, Peter Stilwell não esclareceu quais são essas marcas, nem o que é que levou a esta decisão ou como chegou à conclusão que, em Macau, não convém ou não é possível a um académico da sua universidade comentar assuntos da governação. Que "impressões" e "opiniões" lhe foram chegando? De que "vários sectores"? De quem? Stilwell, crente em verdades absolutas, em dogmas, não acredita em valores absolutos? Defender a liberdade de expressão não merece essa universalidade? Ou isso é coisa para existir apenas confinada a certas latitudes e não em todo o mundo?

Não sei se alguma vez poderemos obter respostas a estas e outras perguntas, mas as desventuras dos últimos dias parecem ter-nos trazido tempos que, parece, nunca se foram. E muito pouco mudou. Muito pouco muda.


Publicado no jornal Hoje Macau em Junho de 2014 

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