"Santos" e "piratas"
povoam a história de Macau. Pelo menos, assim é no livro de Agustina Bessa-Luís
passado na cidade que o vigésimo primeiro rei de Portugal dizia ser do Santo
Nome de Deus. Como nos bons livros de história, passado e presente
confundem-se, às vezes, confundindo-nos. Mas é assim. Muito pouco mudou. Muito
pouco muda.
No século XVI, por exemplo, Macau tanto
"atraía toda a espécie de viajantes em busca de negócios prósperos e
fáceis", como "era também um posto de missão religiosa e onde, em
vista da evangelização da China, se aprendia chinês sem correr os riscos da lei
de Cantão". "Tal como hoje", somos tentados a dizer após um
relance, ainda que exista o pormenor de a pena capital já não ser aplicada no
outro lado das Portas do Cerco por se ensinar chinês aos estrangeiros. Noutros
tempos, não havia caminho mais directo ao coração dos povos - falar a mesma
língua; hoje, talvez continue a não haver, mas mais importante parece ser a
linguagem.
Pela história que chega até nós intacta,
imutável, e pelas circunstâncias actuais que fazem de Macau a "Região
Administrativa Especial patriótica", como classificam os norte-americanos
do Departamento de Estado, por oposição à de Hong Kong, onde a política existe
como luta e onde há mais do que aqueles que se limitam a ouvir quando Pequim
fala, aqui, 500 anos depois, ainda se constroem pontes entre a capital chinesa
e o Vaticano. Laboriosa e pacientemente.
A missão parece sempre longe de acabada e
pouco menos do que impossível e só podia estar entregue a duas partes tão
opostas no desígnio quanto próximas na ambição e perseverança. E na linguagem,
acrescente-se, que de uns e de outros podemos dizer que são insondáveis os
caminhos que levam a misteriosos fins. Sigamos pelo meio, pela história.
Depois de ter sido responsável pela construção
da primeira universidade de estilo ocidental na Ásia, em Macau, a Igreja
Católica continua a reservar à Educação um papel central no território, onde é
talvez o maior prestador de serviços pedagógicos.
Em 1996, com a transferência de administração
à vista e com a esperada perda de privilégios e estatuto de que a Igreja
desfrutava nas relações sempre próximas com o Estado português, nasce o
Instituto Inter-Universitário de Macau (futura Universidade de São José),
criação da Diocese de Macau e da Universidade Católica portuguesa. A construção
de um novo campus em terrenos cedidos pelo Governo de Macau, a extensão para
Zhuhai e a formação de padres da China eram (e continuam a ser) objectivos.
É desta teia que se desprende um professor de
Ciência Política da Universidade de São José, despedido porque se
disponibilizava a comentar a actualidade e as incidências da vida pública local
na comunicação social?
O reitor da Universidade de São José, Peter
Stilwell, teólogo com obra publicada, homem dado à reflexão sobre a questão
central do cristianismo - a essência do divino e a sua existência -, habituado
aos rigores do pensamento exigidos por disciplinas como a metafísica e a
ontologia, achou que um professor da instituição que dirige passa das marcas
quando intervém como cidadão.
Nas declarações que fez sobre este caso, Peter
Stilwell não esclareceu quais são essas marcas, nem o que é que levou a esta
decisão ou como chegou à conclusão que, em Macau, não convém ou não é possível
a um académico da sua universidade comentar assuntos da governação. Que
"impressões" e "opiniões" lhe foram chegando? De que
"vários sectores"? De quem? Stilwell, crente em verdades absolutas,
em dogmas, não acredita em valores absolutos? Defender a liberdade de expressão
não merece essa universalidade? Ou isso é coisa para existir apenas confinada a
certas latitudes e não em todo o mundo?
Não sei se alguma vez poderemos obter
respostas a estas e outras perguntas, mas as desventuras dos últimos dias
parecem ter-nos trazido tempos que, parece, nunca se foram. E muito pouco
mudou. Muito pouco muda.
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